“A prerrogativa de foro ainda constitui objeto de forte desagravo por parte da nossa sociedade, por constituir um privilégio de determinadas classes, não coadunando, por essa razão, com os princípios republicanos e democráticos.”
*Por Tiago Monteiro Tavares
A Operação Lava Jato reacendeu em todos nós brasileiros uma esperança de Justiça e, com ela, também a esperança de avançarmos mais um passo no combate às desigualdades. Esse deve ser, essencialmente, um dos legados desta operação, que aterrorizou aqueles que fazem da política uma relação perniciosa, como evidenciado, por exemplo, com a famosa “Delação do Fim do Mundo”, na qual executivos da empreiteira Odebrecht revelaram ao país como funcionava esse balcão. Junto com ela, temos vimos aumentar a indignação contra o chamado foro privilegiado.
Recentemente, a investigação contra o ex-ministro da saúde, General Eduardo Pazuello, por omissões durante a pandemia, reacendeu o debate quanto ao foro privilegiado. Quando deixou o Ministério da Saúde, Pazuello ficou refém da Justiça e precisou da ajuda do presidente para retomar seu foro privilegiado, sendo nomeado ministro da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, tudo para não perder o privilégio no julgamento.
Desde a nossa primeira constituição promulgada, em 1891, houve uma forte repulsa à Carta por ela ter-se afastado, dois anos após a proclamação da República, de um dos seus princípios fundamentais dessa forma de governo e do Estado de Direito, a igualdade. A aversão foi ao privilégio de foro para as autoridades da época. Passados 130 anos, a prerrogativa ainda constitui objeto de forte desagravo por parte da nossa sociedade, por privilegiar determinadas classes, não coadunando, por essa razão, com os princípios republicanos e democráticos.
Perfilhando esse entendimento, é merecido destacar o voto do ilustre ex- ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, na Pet 3270/SC:
A prerrogativa de foro, com a abrangência que tem hoje, não é mais admissível. Deve ser adstrita, portanto, tão somente aos crimes de responsabilidade, aqueles praticados por funcionários públicos e agentes políticos em razão de suas funções. Daí sustentar-se que os crimes comuns, por não serem vinculados ao exercício da função pública e não se coadunarem com o exercício de representação popular, devem ser submetidos ao foro comum, em respeito ao princípio constitucional da isonomia e do juiz natural.
O tema deve ser positivado na Constituição no sentido restrito, ou seja, em relação apenas aos crimes funcionais, sem margens ou possibilidade de ampliação, que deve ser limitado às faltas e crimes vinculados ao exercício da função pública, de forma a alterar a redação dos §§ 1º e 3º do art. 53 e à alínea “b” do inciso I do art. 102 da Constituição Federal.
O privilégio, como hoje em vigor, não é ruim só porque diferencia cidadãos segundo os cargos que ocupam, mas porque gera em todos nós uma sensação de impunidade pela demora de processos e julgamentos. Hoje, o tempo médio perante o STF é de 1.536 dias, ou seja, 2 anos e quatro meses, segundo dados do Projeto Supremo em Números, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). O combate à corrupção também leva a um aumento do número de processos em tramitação nos tribunais superiores, o que tende a aumentar ainda mais o tempo de julgamento das ações.
Essa anomalia constitucional hoje blinda, por assim dizer, mais de 40 mil agentes públicos, estabelecendo que eles só podem ser processados e julgados por um tribunal. Segundo a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), o número é ainda maior: 45 mil pessoas. Esse número abrange autoridades com prerrogativa de foro perante os Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais, Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF).
Penso que, quanto maior for a responsabilidade do indivíduo em relação às leis, maior deve ser sua pena em caso de descumprimento. Infelizmente, o que temos visto é o contrário, e o benefício acaba sendo concedido àqueles que deveriam ser fiscalizados com maior rigor. Por isso, ainda em 2007 e já no exercício do mandato eletivo de deputado distrital, encaminhei ao Congresso Nacional uma Indicação Legislativa (226/2007) sugerindo a aprovação do fim da prerrogativa em apoio à primeira proposta de emenda à Constituição (PEC 470/2005) – ainda em tramitação – que visa acabar com a prerrogativa de foro para cargos eletivos.
Por essa proposta, os deputados e senadores serão, doravante, processados por juiz de primeira instância, nas ações criminais, como qualquer cidadão. Caberá a esse julgador dar ciência ao Senado Federal ou à Câmara dos Deputados, conforme o caso, de denúncia que tenha recebido, por crime ocorrido após a diplomação, e as ações penais contra parlamentares deixarão, assim, de ser processadas, originalmente, no Supremo Tribunal Federal. Esse fato, por si só, será inequívoco contributo ao aperfeiçoamento de nossas instituições.
Pôr fim ao foro privilegiado é mais do que uma necessidade, é um desejo da população de acabar de vez com o velho conceito de que Justiça é só para os pobres. Segundo o Instituto Paraná Pesquisas, cerca de 92,5% dos brasileiros são a favor que os políticos sejam julgados na justiça comum, como qualquer cidadão. O Congresso Nacional tem em suas mãos a oportunidade de fazer valer a vontade da população, entrando para a história por acabar com 130 anos de privilégios. Precisamos fortalecer nossa democracia, fazendo valer o maior princípio democrático: a igualdade.
*Tiago Monteiro Tavares é cientista político e jornalista, especialista em políticas públicas, assessoria parlamentar e relações governamentais.