Região foi alvo de uma disputa entre Espírito Santo e Minas Gerais resolvida em 1963, mas, até hoje, alguns moradores ainda sonham em ser capixabas
Há 59 anos, um acordo dava fim à chamada “Guerra do Contestado” travada por décadas entre Minas Gerais e Espírito Santo por um largo território na divisa dos Estados. Apesar disso, até hoje há quem diga na cidade de Mantena, na região do Rio Doce, que o município de pouco mais de 25 mil habitantes deveria pertencer ao Estado vizinho, já que na cidade capixaba de Barra de São Francisco – que fica a cerca de 20 minutos de carro – existem mais empregos, instituições de ensino e acesso à saúde pública.
O cineasta Cloves Mendes, de 65 anos, autor do documentário “Contestado: A Guerra sem Tiros”, acredita que este sentimento seja mais presente entre os mantenenses das duas últimas gerações, que assistiram a um esvaziamento populacional na cidade, desde os anos 60, e ao grande desenvolvimento da região capixaba.
“Barra de São Francisco é hoje um polo de granito, de café, enquanto Mantena ficou esquecida pelos governos mineiros, muitos mal sabem que existimos. Essas gerações, que lembram de quando as escolas e os médicos ficavam todos aqui, do lado mineiro, e veem hoje tudo ao contrário, ficam com esse sentimento. Mas os mais antigos, que viram a guerra e lutaram para pertencer a Minas, jamais consentiriam em ser capixabas”, conta.
A reportagem de O TEMPO ouviu moradores da cidade que querem virar cidadãos do Espírito Santo, mas, também, outros que cravam que são mineiros e disso não abrem mão. Entretanto, mesmo os que não desejam a separação de Minas Gerais admitem que os capixabas têm recebido mais investimento público. Funcionário de uma loja de peças de caminhão, Tiago Ferreira, de 37 anos, acredita que seria positivo pertencer ao Estado vizinho.
“Lá, o governo incentiva as coisas a crescerem, aqui ninguém incentiva nada. É muita diferença. Apesar de ser uma cidade muito próxima ao Estado vizinho, lá tem mais indústria, trabalho, educação e saúde. Acredito que muita gente pense como eu, mas, infelizmente, nunca deixarão isso acontecer”, disse.
Apesar de acreditar que seria inviável mudar de Estado, o psicólogo Roberto Jorio, de 65 anos, defende que, se Mantena ficasse no território vizinho em 1963 – quando foi assinado o acordo que traçou a divisa –, a cidade hoje seria um polo da região. “Mantena era maior do que Barra de São Francisco na época. Mas, infelizmente, quando houve a erradicação do café, a cidade ficou esquecida, enquanto Barra prosperou, e muito. Temos uma relação boa com os capixabas, mas acho difícil que a cidade tenha o desenvolvimento se, hoje, retornasse para o Espírito Santo”, argumenta.
“Além disso, seria complicado, pois temos vínculos com Minas Gerais, fomentos, entidades estabelecidas. O que sempre deixo claro é que, se tivesse continuado no Espírito Santo, seríamos uma potência e, na realidade, regredimos muito em relação ao município vizinho”, completa Jorio.
Uma auxiliar administrativa de um supermercado, de 26 anos, que preferiu não ser identificada, afirma que quer continuar sendo mantenense. “É muito bom ser mineira, não tem outro Estado que eu gostaria de pertencer. Mas, na questão de infraestrutura, estar do lado de lá seria melhor. Sinto que o cidadão é tratado com mais respeito, pois o Espírito Santo tem menos cidades que Minas, cuidam mais do povo”, fala.
A jovem diz ainda que Barra de São Francisco conta com um Hospital Regional que, para ela, seria nível 10, enquanto a cidade mineira tem uma unidade de saúde “nível 1”. “Quando precisamos de tratamento para algo de maior gravidade vamos ao Pronto-Socorro de lá. Tem muita gente de Mantena que trabalha lá, o ensino também é melhor, tem mais faculdades, há ensino integral, Ministério do Trabalho. São cidades muito próximas, mas com uma diferença muito grande”, lembra a moradora.
A Fundação João Pinheiro (FJP), que é responsável pela demarcação dos limites em Minas, informou que, para qualquer criação, incorporação, fusão ou desmembramento de municípios, são exigidas uma lei complementar federal e a realização de um plebiscito entre os moradores. Portanto, sem uma maioria entre a população em prol da ida para o Espírito Santo, o sonho destes moradores fica cada vez mais distante. Problemas de território ainda são frequentes. Ainda de acordo com o cineasta Cloves Mendes, até hoje moradores, tanto do lado mineiro quanto do capixaba, se deparam com problemas relacionados à divisa dos Estados.
“Ainda existem problemas de demarcação de terras na região, gente que paga imposto em um lugar e descobre que na verdade o empreendimento está em outra cidade. Recentemente o IBGE teria atualizado a divisão”, completa.
A Prefeitura de Barra de São Francisco afirma que, recentemente, um empresário de Mantena teria construído um posto de combustíveis e, quando foi registrá-lo na cidade capixaba, descobriu que o empreendimento na verdade estava em território mineiro. “Essa questão dos novos limites entre municípios e divisa de Estados está acontecendo em várias regiões daqui, por causa do refinamento do GPS do IBGE. Barra de São Francisco também está perdendo cerca de 3.000 hectares para o vizinho município de Mantenópolis”, disse o município por nota. Por conta disso, empresários da cidade passaram a ter que registrar seus imóveis, negociar ou vender os bens nos cartórios de Mantenópolis.
A reportagem de O TEMPO procurou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mas foi informada que, para este tipo de informações sobre territórios, a Fundação João Pinheiro (FJP) deveria ser questionada. O órgão estadual também foi procurado e informou, por meio de nota, que “qualquer elemento do território (empreendimentos econômicos, imóveis rurais ou urbanos etc.), cuja proximidade de limite municipal gere dúvida de jurisdição, demanda a elaboração de uma Certidão de Pertencimento Municipal”. “Para estudo e emissão da Certidão de Pertencimento Municipal é necessário que o proprietário envie, por e-mail, o arquivo georreferenciado completo do imóvel, conforme padrões exigidos na Lei Federal 10.267/2001”, explicou.
“O solicitante também deve enviar seus dados pessoais para emissão do Documento de Arrecadação Estadual (DAE)”, acrescenta. O e-mail para envio das informações e tirar dúvidas sobre o procedimento é limites@fjp.mg.gov.br. A Prefeitura de Mantena também foi procurada, mas informou apenas que não se posicionaria sobre a questão. Questionada, a Câmara Municipal de Mantena disse somente que não existe qualquer movimento “separatista” na cidade e que a questão “ficou no passado”.
O Contestado
A Batalha do Contestado aconteceu entre 1904 e 1963, quando um largo território entre Minas e Espírito Santo foi disputado pelos Estados. Apesar da tensão desde o início do século passado, foi na década de 40 que a questão se intensificou, após milhares de pessoas de diversas regiões do país migrarem para a área em busca de oportunidade, por conta das grandes fazendas de café e da exploração de madeira existentes na região.
Durante os 12 anos de pesquisa e entrevistas para a produção de seu documentário, Cloves Chaves descobriu que essa indefinição sobre o território dos estados gerou um período de caos para todos os povoados da região. “Virou uma região sem lei, que tinha duas delegacias, duas coletorias, dois comandos. Aí, o cara matava em BH e fugia para essa região do Contestado, onde não seria importunado. Se alguém cometia um crime do lado mineiro, fugia para o Espírito Santo, e vice-versa. A falta de lei atraiu muitos pistoleiros, disputas de terra por grileiros e moradores. Então, apesar de não ter ocorrido batalhas entre as polícias dos dois Estados, ocorreram muitas mortes em decorrência da disputa”, explica o cineasta.
Entre 1942 e 1948, a tensão entre as duas polícias se intensificou, com os dois Estados colocando milhares de soldados em trincheiras, especialmente nos morros próximos a Mantena. Mas, na década de 50, houve uma trégua na batalha e as polícias se uniram contra um mal comum: um movimento liderado por uma espécie de “messias” que queria criar um novo Estado. Conhecido como “Canudos Mirim”, o movimento do beato Udelino Alves de Matos pretendia criar o “Estado Novo de Jeová” na região, com ocupação das chamadas terras devolutas, terrenos públicos sem destinação pelos Estados.
“Ele andava com a Bíblia, mas não era tão beato quanto o Antônio Conselheiro, tinha pretensões políticas. Ele foi para a região para dar aula em uma fazenda de um proprietário muito rico, que não conseguiu professor com nenhum dos dois Estados. Depois viu a oportunidade e se declarou governador do Estado de Jeová”, lembra o cineasta.
A batalha pela Zona do Contestado chegou ao fim em setembro de 1963, quando foi assinado um acordo pelos governadores Magalhães Pinto, de Minas, e Lacerda Aguiar, do Espírito Santo, que determinava a atual delimitação dos dois Estados.
*Fonte: O Tempo