Cientistas, governantes e profissionais de saúde têm quatro objetivos básicos para reduzir número de infectados e mortes: decifrar os mecanismos da doença; encontrar tratamento; controlar a taxa de transmissão e vacinar a população
Nos últimos dois anos, muito se falou sobre os grandes problemas que as doenças virais podem causar na humanidade. Acompanhamos de perto a luta dos pesquisadores para entender como o vírus causador da Covid-19 estava levando à morte milhões de pessoas no mundo. Hoje sabemos bem que quando surge uma epidemia ou uma pandemia é preciso agir rápido a fim de se evitar mais mortes. Frente a esse cenário, a ação de cientistas, governantes e profissionais de saúde para reduzir o número de infectados e mortes tem quatro objetivos básicos: decifrar os mecanismos da doença; encontrar um tratamento; controlar a taxa de transmissão e vacinar a população. O problema é que nem sempre é fácil atingir essas quatro metas, e a população pode sofrer gravemente das consequências da doença por um longo tempo.
Esse é o caso da dengue, uma doença viral, transmitida pelo mosquito Aedes Aegypti, que assombra o Brasil e mais de 100 países no mundo todo há décadas. A dengue é atualmente responsável por mais de 390 milhões de infecções no mundo, sendo destas 96 milhões com sintomas. Ano após ano, nós sofremos as consequências dessa doença que não só causa dores no corpo, sangramentos, dores de cabeça, mas também pode levar à morte. O que torna a doença grave, aumentando o risco de morte, ainda é um mistério que os pesquisadores tentam desvendar. Seria a famosa pergunta de um milhão de dólares!
Hoje, sabemos que a dengue grave está, pelo menos em parte, relacionada ao desenvolvimento de uma inflamação sistêmica, de corpo inteiro, que pode desencadear extravasamento de líquidos de dentro dos vasos sanguíneos, ou mesmo rompimento desses vasos. Além disso, os níveis de plaquetas podem cair drasticamente na dengue. Essas células são essenciais para manter a coagulação do sangue e sua diminuição pode gerar um quadro de choque (quando os órgãos param de funcionar adequadamente).
Apesar de há anos os brasileiros sofrerem na pele as consequências da dengue, ainda não há vacina ou tratamento específico para essa doença. E apesar de já se saber muito sobre como o vírus da dengue opera dentro do corpo humano, muitos aspectos da doença continuam sendo um mistério a ser desvendado. Por exemplo, por que algumas pessoas desenvolvem dengue grave e outras apenas apresentam sintomas leves?
Pensando nisso, um grupo de pesquisa da UFMG se dedica a entender os mecanismos da doença e investigar novos tratamentos para a dengue. Como ocorre na maioria das doenças virais, a primeira ideia é sempre eliminar o vírus do organismo, por meio de medicamentos antivirais, o que infelizmente ainda não existe para a dengue.
Por conta dessa limitação, o laboratório do professor Mauro Teixeira, da UFMG, tem um outro foco: fazer com que o próprio corpo reaja à doença, diminuindo o risco de doença grave e morte. Essa estratégia se chama terapia com foco no hospedeiro. Uma vez que a inflamação parece ser um componente fundamental da dengue grave, o grupo busca decifrar o porquê dessa inflamação ser tão exacerbada em alguns indivíduos, levando à morte. Infelizmente, a administração de remédios anti-inflamatórios comumente utilizados pela população (como a aspirina, o diclofenaco e o ibuprofeno) não são recomendados na doença, já que podem agravar os sintomas.
Em um artigo científico publicado no dia 16 de março, na revista científica de elevado impacto internacional eLife, os cientistas do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG propõem uma solução para esse quebra-cabeça. Os pesquisadores descobriram que existe uma falha nos mecanismos anti-inflamatórios nos pacientes graves, e é isso que faz a doença ficar ainda mais grave. Investigando o sangue de pacientes com dengue, os autores observaram que a quantidade de uma proteína essencial para o controle da inflamação produzida pelo próprio corpo estava reduzida durante a doença. Essa proteína chamada Anexina A1 é muito importante para controlar a inflamação, e sua redução durante a dengue indica que o “freio” da resposta inflamatória está prejudicado na dengue. Sem o freio da inflamação, as células do sangue e dos tecidos ficam superativadas, causando sérias consequências no organismo.
Mas o que acontece se os pacientes com dengue não estão produzindo essa proteína “freio” da inflamação? Para entender o quanto a proteína Anexina A1, é importante para frear os sintomas da dengue, os pesquisadores injetaram o vírus da dengue em camundongos que não produzem essa proteína. Como resultado, os camundongos geneticamente modificados que não produzem a Anexina A1 desenvolveram uma forma mais grave da dengue, mostrando que essa proteína oferece proteção durante a doença reproduzida no laboratório. A próxima ideia foi usar essa mesma proteína como um tratamento. Como a proteína é grande, os pesquisadores utilizaram uma pequena porção ativa da Anexina A1 (conhecida como peptídeo Ac2-26). Quando os pesquisadores injetaram esse peptídeo nos camundongos, os animais desenvolveram uma forma menos grave da dengue.
Por fim, foi comprovado por experimentos em células e utilizando camundongos, que o peptídeo Ac2-26 age diretamente em uma célula do corpo que é muito importante em gerar sangramento: o mastócito. Sabe-se que o vírus da dengue ativa os mastócitos que moram na pele e nos vasos sanguíneos dos pacientes, causando sangramentos e choque. O peptídeo testado foi capaz de frear a ativação dessas células, reduzindo a gravidade da doença.
O estudo é ainda mais promissor devido ao fato de que pequenas porções da proteína Anexina A1 já estarem na fase final de estudos em humanos. Há vários estudos clínicos (com pacientes) testando a segurança e eficácia desse fármaco em outras doenças inflamatórias não infecciosas. O grupo do Prof. Mauro Teixeira extrapolou as fronteiras onde esse fármaco tinha sido testado até então, e propõe que esse novo tratamento pode também ser benéfico em uma das doenças que mais impactam a população brasileira: a dengue.
A descoberta de que durante a dengue há uma falha no “freio” da inflamação e a proposta de modular a resposta do próprio individuo doente durante a infecção são as novidades do artigo publicado recentemente pelo grupo. Os pesquisadores afirmam que no futuro esse novo fármaco poderá ser combinado a algum antiviral no tratamento da dengue. A busca de antivirais é outra frente de luta do grupo. Agora, o grupo quer demonstrar como esses freios da inflamação também podem falhar em outras doenças virais como a COVID-19, a febre Chikungunya e a Zika. Sabemos que epidemias vêm e vão, e estudos como esse podem ser um primeiro passo em direção a um tratamento comum para as diversas doenças virais que acometem os brasileiros e o mundo.
*informações Academia Brasileira de Ciências (ABC)