Venda de veículos a bateria cresceu 77% em 2021, enquanto cidades como Rio de Janeiro e Recife veem os ônibus sumirem das ruas
Em um futuro com mais carros elétricos nas ruas e menos transporte coletivo, adivinhe quem ficará a pé? Ganha um cartão Riocard Mais novinho quem responder “os mesmos de sempre”. De que adianta ter um carro elétrico, moderno, sem motorista, transportando uma ou duas pessoas? Se considerarmos que um automóvel desses no Brasil está custando entre R$ 160 mil e R$ 500 mil, essas duas pessoas quase certamente serão brancas, ricas e vão ficar engarrafadas em alguma rua de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Logo, isso não vai resolver o problema de mobilidade e de poluição nas grandes cidades. Enquanto isso, no outro lado da pirâmide social, a crise do transporte público se agrava, com o fechamento de empresas e a retirada de ônibus das ruas. No Rio de Janeiro, nos últimos dois anos, 176 linhas pararam de oferecer o serviço. Em Recife houve uma redução de 47% na frota de ônibus. O mesmo acontece em Teresina e em outras capitais.
Trata-se de uma versão mais nova e mais verde da Belíndia, termo cunhado pelo economista Edmar Bacha no início dos anos 70. A parcela Bélgica do Brasil, empresas e pessoas, resolve ser sustentável e investe em carros elétricos. Já a nossa fração de Índia, absolutamente majoritária, anda quilômetros para encontrar algum transporte e ter o direito de viajar apertado até o trabalho. Isso significa que o carro elétrico é ruim, que precisa ser cancelado? Não, de forma alguma. Os Battery Electric Vehicles (BEVs), na sigla em inglês, são uma tendência mundial, especialmente na Europa e na Ásia. Várias montadoras multinacionais já anunciaram que vão parar de fabricar carros a combustão até 2030. Entre elas, BMW, Volvo, Honda, Ford e Nissan. Será uma alegria para os ouvidos e para os pulmões não ver mais os barulhentos e poluentes carros movidos à gasolina ou diesel circulando pelas ruas. Mas é preciso fazer uma ressalva importante: a tendência existe, é fato, porém ainda vai demorar um bocado para virar realidade, especialmente em um país empobrecido como o Brasil.
Apesar dos pesares, o mercado está entusiasmado. O ano de 2021 foi o melhor da história para o setor de carros elétricos no Brasil. Segundo a Associação Brasileira dos Veículos Elétricos (ABVE), foram vendidas 34,9 mil unidades de carros eletrificados no ano passado. Um crescimento de 77% em comparação com 2020. E, só nos primeiros quatro meses de 2022, o crescimento já chegou a 78%, em relação ao mesmo período do ano passado. É verdade que 34,9 veículos vendidos em um mercado que emplacou 1,9 milhão de carros tradicionais é muito pouco, mas vale comemorar.
Esse crescimento conta com uma forcinha do governo. O Brasil possui alguns incentivos tributários para veículos eletrificados. O primeiro deles, criado em 2015, zerou a alíquota do imposto de importação de carros 100% elétricos (até então era 35%, igual a de qualquer veículo a combustão importado). Além disso, desde 2018, o IPI dos veículos elétricos foi reduzido de 25% para 7%, 8% ou 9%, dependendo do índice de eficiência energética. O que mais eleva o preço de um carro elétrico é a bateria, com as suas peças caras e poluentes. E esse problema grave pode até acabar se transformando em vantagem competitiva para Brasil. A indústria do etanol, em parceira com a Nissan, vem desenvolvendo há algum tempo modelos de carros movidos com células de combustível, que substituiriam as baterias. Na prática, os carros poderiam continuar sendo abastecidos normalmente nos postos de combustível, dispensando o sistema de recarga do tipo plug-in e evitando a criação de pontos específicos de reabastecimento. Mas essa é outra história.
No mundo real, aquele dos ônibus lotados e das passagens caras, quem paga a conta, invariavelmente, é o trabalhador, o estudante, o usuário que precisa sair cedo para chegar a tempo no seu compromisso. São Paulo é uma das poucas cidades brasileiras que conta com subsídios para transporte público, cobrindo 11% dos custos operacionais. Em Buenos Aires, apenas 36% do custeio do transporte público é coberto pelas tarifas pagas pelo passageiro. Em Londres, o custeio se dá por subsídios provenientes de um fundo com recursos públicos formado pelo pedágio urbano, além de dinheiro proveniente da cobrança de taxas e multas.
Um modelo financiado, quase que exclusivamente, pelo valor das passagens pagas com o salário mirrado dos brasileiros tende ao esgotamento. Não é bom para ninguém, nem para as empresas, que começam a fechar suas portas. É um ciclo vicioso, mais ou menos óbvio: o preço do combustível sobe, a inflação também, as passagens ficam mais caras, os passageiros insatisfeitos vão embora, trocam o ônibus pela van (muitas vezes operada pela milícia local), o balanço das empresas não fecha, as passagens sobem mais um pouco…
Não há dúvida, a eletrificação do transporte é uma realidade, um caminho sem volta. Precisamos eletrificar, inclusive, todos os ônibus e táxis. Mas não podemos esquecer do básico. E um transporte público confiável e seguro é mais do que básico, é essencial. Sem ele, as cidades param. É urgente e necessário construir alternativas que atendam principalmente os setores mais pobres. Um transporte público eficiente e economicamente justo, com trens, ônibus, barcas e metrô, reduz a quantidade de carros nas ruas, sejam eles elétricos ou convencionais. O trânsito flui melhor, o ar fica mais respirável, as emissões de gases de efeito estufa caem, os acidentes são reduzidos e as mortes também. Ou seja, todos ganham. E se todos ganham, é bom pensar em um financiamento coletivo. Se depois disso, você ainda quiser passear com o seu carro elétrico moderno, silencioso e ambientalmente sustentável, vá em frente. Boa viagem.
*informações portal Colabora