Desde 2016, nenhum centímetro de território indígena foi demarcado no Brasil. Atualmente, mais de 300 processos aguardam por regularização
Desde 2016, nenhum centímetro de território indígena foi demarcado no Brasil. Atualmente, 40,8% das áreas habitadas por povos originários não dispõem de providências legais para a demarcação, ou seja, quatro a cada 10 reservas.
Os dados foram analisados pelo Metrópoles com base em levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
O tema voltou a ganhar o noticiário após os assassinatos do indigenista Bruno Araújo e do jornalista inglês Dom Phillips, no Vale do Javari, no Amazonas.
Hoje, tramitam mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas no país.
Desde a aprovação do Estatuto do Índio, em 1973, esse reconhecimento formal passou a obedecer a um procedimento administrativo. Depois, a Constituição Federal de 1988 tornou o processo obrigatório e estabeleceu prazo de cinco anos para a conclusão do trâmite. O problema é que a determinação nunca saiu do papel.
Compete à Fundação Nacional do Índio (Funai) iniciar o processo de demarcação. Na primeira etapa, a instituição nomeia um antropólogo responsável por elaborar uma análise do caso, e esse estudo será submetido à deliberação do órgão. Depois de a fundação aprovar a demarcação, o ministro da Justiça declara os limites territoriais e a demarcação física.
Após os limites da área serem definidos, a Funai realiza a demarcação física do perímetro. Em seguida, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) realiza o reassentamento de eventuais ocupantes não índios das terras.
O penúltimo passo é a homologação do território, que deve ser feita por meio de decreto do presidente da República. Para finalizar o processo, a demarcação deve ser registrada, em até 30 dias, no cartório de imóveis da comarca correspondente e na Secretaria de Patrimônio da União.
Discussão do marco temporal
O maior conflito envolvendo a questão é o marco temporal. A tese que visa limitar os direitos das etnias às terras – defendida pelo governo federal, por ruralistas e por grupos interessados na exploração econômica das áreas – interfere diretamente na demarcação.
Se o marco temporal for aprovado, as populações indígenas só terão direito à terra que ocupavam até dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. A legislação atual é de um decreto presidencial de 1996.
O caso está no Supremo Tribunal Federal (STF). O julgamento entraria em pauta do STF na última quinta-feira (23/6), porém a votação foi adiada pela terceira vez.
Todos os ex-presidentes reconheceram terras indígenas no país durante seus mandatos. O processo começou em 1985, com José Sarney (MDB). Desde então, somente Michel Temer (MDB) e o presidente Jair Bolsonaro (PL) não demarcaram reservas.
Capitão reformado do Exército, Bolsonaro se elegeu com o discurso contra a demarcação, e tem cumprido a promessa.
“Não demarcarei um centímetro quadrado a mais de terra indígena. Ponto final”, disse o atual mandatário, em dezembro de 2018. Na ditadura militar (1964-1985), as áreas pertencentes aos povos originários também não foram reconhecidas.
Atualmente, são 1.296 terras indígenas no Brasil. Este número inclui as áreas já demarcadas (401) e aquelas cujo procedimento demarcatório está parado em alguma das etapas (306). Outras 435 reservas estão em alguma fase do processo de regularização, como demarcação física ou reconhecimento, por exemplo.
Veja as homologações de terras indígenas por presidente:
- José Sarney (1985 a 1990): 67
- Fernando Collor (1991 a 1992): 121
- Itamar Franco (1992 a 1994): 18
- Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002): 145
- Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2010): 79
- Dilma Rousseff (2011 a 2016): 21
- Michel Temer (2016 a 2018): zero
- Jair Bolsonaro (desde 2019): zero
A falta de demarcação gera conflitos e insegurança para centenas de comunidades e povos originários. Bolsonaro defende, por exemplo, o garimpo e a mineração nessas áreas.
Estagnação
Na última semana, um grupo de indígenas protestou na Câmara dos Deputados, em Brasília, contra o marco temporal. Os manifestantes pediram que deputados federais barrassem projetos contrários aos direitos dos povos originários.
“O cenário fica cada vez pior. Nossa luta continuará nos estados, nas aldeias e nos nossos territórios – que eles tentam, a todo custo, tomar”, pondera Marcos Sabaru, assessor político da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apip).
Na sexta-feira (24/6), os Bispos Católicos da Amazônia Legal solicitaram ao ministro Luiz Fux, presidente do STF, que a Corte retome o julgamento do marco temporal.
O Cimi defende que o recurso extraordinário seja pautado. “É de conhecimento de todos nós que o Estado brasileiro tem uma dívida histórica com os povos indígenas. Essa dívida faz referência ao direito que têm os povos sobre as terras de ocupação originárias, como previsto na Constituição Cidadã de 1988”, frisa a entidade.
Versão oficial
A Funai garante que trabalha em restrita obediência à legislação vigente, com absoluto respeito aos princípios constitucionais que regem a Administração Pública e aos entendimentos jurídicos da Advocacia-Geral da União (AGU).
“Cumpre esclarecer que a atual gestão da Funai não é contra demarcações, mas sim contra irregularidades nesses processos praticadas por gestões anteriores”, destaca, em nota.
Segundo a fundação, os processos têm avançado em regularizações pendentes de áreas já demarcadas.
“O investimento da Funai em regularização fundiária chegou a R$ 42,5 milhões entre 2019 e 2021. Os valores superam em 233% o pagamento de indenizações realizado entre os anos de 2016 e 2018, cujo aporte ficou em torno de R$ 12,7 milhões. As indenizações se referem a benfeitorias de boa-fé construídas por ex-ocupantes de terras indígenas”, conclui.
*Fonte: Metrópoles