Integrantes da entidade recomendam que o Tribunal Penal Internacional avalie ainda a possibilidade de genocídio cometido pelo estado
O Tribunal Permanente dos Povos (TPP) condenou hoje (1º) o presidente Jair Bolsonaro (PL) por crimes contra a humanidade cometidos durante a pandemia da Covid-19 e indicou que uma outra política teria salvo pelo menos 100 mil pessoas.
O órgão internacional, criado nos anos 70, não tem o peso do Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda, nem a capacidade de tomar ações contra um estado ou chefe de governo. Mas a condenação é considerada por grupos da sociedade civil, ex-ministros e juristas como uma chancela importante para colocar pressão sobre o Palácio do Planalto e expor Bolsonaro no mundo.
Conforme a coluna antecipou no início da semana, a sentença declarou que o brasileiro foi diretamente responsável por graves violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade. Bolsonaro, segundo o tribunal, cometeu “atos dolosos” e “intencionais” contra sua população.
Os membros do órgão ainda recomendam que o Tribunal Penal Internacional avalie ainda a possibilidade de genocídio cometido pelo estado, ao longo de décadas e intensificada mais recentemente.
Se fosse estabelecido em um tribunal como o de Haia, tal sentença poderia até representar a prisão perpétua do acusado. O governo brasileiro ignorou o procedimento e nem sequer mandou um representante à audiência, organizada há dois meses.
“Ao contrário da maioria das sentenças do nosso Tribunal Permanente dos Povos, esta sentença refere-se à responsabilidade pessoal, ou seja, à responsabilidade penal de uma única pessoa: à culpa do presidente brasileiro Jair Messias Bolsonaro por crimes contra a humanidade”, afirma a sentença.
“O crime pelo qual o presidente Bolsonaro foi responsável consiste em uma violação sistemática dos direitos humanos, por ter provocado a morte de dezenas de milhares de brasileiros devido à política insensata que promoveu em relação à pandemia de Covid-19”, declarou.
“Contrariando a posição unânime de cientistas de todo o mundo e as recomendações da Organização Mundial da Saúde, Bolsonaro não só fez com que a população brasileira não adotasse as medidas de distanciamento, isolamento, proteção e vacinação destinadas a limitar a infecção, como várias vezes criou vários obstáculos a elas, frustrando as tentativas de seu próprio governo de estabelecer políticas de alguma forma destinadas a proteger a população do vírus”, destacou a sentença.
“Como resultado dessa conduta, calcula-se – com base na comparação entre o número de óbitos no Brasil e o número de óbitos em outros países que adotaram as políticas anti-Covid-19 recomendadas por todos os cientistas – que morreram no Brasil cerca de 100 mil pessoas a mais do que teriam falecido em decorrência de uma política mais responsável”, alerta.
“É claro que esse número é bastante aproximado: pode ser um número menor, mas também um número maior. O certo é que a absurda política de saúde do presidente Bolsonaro causou dezenas de milhares de mortes”, destaca.
“Pois bem, tal conduta foi qualificada, pela sentença, como crime contra a humanidade”, afirmou.
“Mortes teriam sido evitadas”
A sessão de hoje foi aberta por um dos membros da corte, Gianni Tognoni, que declarou que o tribunal recebeu “indícios substanciais” e que o governo jamais respondeu aos convites da entidade para participar do processo.
Segundo ele, o principal foco do tribunal foi a “violação sistemática” dos direitos do povo brasileiro, diante das políticas adotadas durante a Covid-19. “Ao violar profundamente seus poderes, o governo e o presidente transformaram uma emergência severa, que pedia proteção adequada, em uma ocasião para atacar populações já discriminadas, qualificadas como descartáveis”, disse. Segundo ele, a vacinação foi prova disso.
A sentença foi lida por Eugenio Zaffaroni, um dos membros do tribunal, e indicou crimes contra a humanidade como resultado da política de saúde do governo. Segundo ele, a responsabilização de Bolsonaro é “inquestionável” e que aprofundado pela discriminação contra grupos mais vulneráveis, como indígenas, negros e profissionais de saúde. Segundo ele, o discurso discriminatório de Bolsonaro é uma “clara violação de direitos humanos”.
Zaffaroni destacou que a qualificação de crimes contra a humanidade foi amplamente provada. “Ficou suficientemente provada que, depois de primeiro momento de confusão científica, a OMS descartou o caminho da imunidade de rebanho [para combater a epidemia ]. Por outro lado, humanidade tinha experiencia da Gripe Espanhola, custando ao mundo 5% de seus habitantes”, disse.
Segundo ele, Bolsonaro defendeu que o vírus era gripezinha, questionou as vacinas e reafirmou sua confiança na imunidade de rebanho. Ele ainda minimizou os números de mortes e defendeu a cloroquina, que já tinha sido descartado. “Mortes teriam sido evitadas se política recomendada pela OMS teria sido seguida”, afirmou.
Ato doloso por parte de Bolsonaro
Para qualificar os atos como crimes contra a humanidade, a lei ainda estabelece que a intencionalidade precisa ser provada. Na sentença, o tribunal apontou que Bolsonaro optou por salvar a economia de forma deliberada. “O maior mal foi escolhido: a aflição às vidas humanas”, disse.
“Morte em massa foi produzida por uma decisão dolosa ou por omissão”, afirmou. “O resultado foi deliberado, ou seja, doloso.”
“Não se pode considerar que o dolo foi acidental. O resultado letal em massa foi doloso”, completou. Isso significa ainda que se trata de um crime que não irá prescrever.
Genocídio precisa ser examinado
O tribunal, porém, não atendeu ao pedido de condenação por genocídio. Segundo Eugenio Zaffaroni, a taxa de letalidade com indígenas e negros foi superior à média da população, o que poderia sugerir uma brecha ao genocídio.
Mas a avaliação é de que o contexto de subordinação desses grupos revela que os problemas eram anteriores, no que se refere à discriminação, e que os ataques contra essas populações são profundos na sociedade.
Segundo ele, o governo sabia da vulnerabilidade desses grupos. Mas, nesse caso particular, o resultado não é suficiente. Precisa existir a prova de uma intenção. “Esse tribunal é cauteloso sobre a qualificação do genocídio, para evitar a banalização do conceito”, disse.
Apesar de não condenar Bolsonaro, o membro do tribunal alerta que, pelo menos em termos éticos, existem “indícios sérios de que o estado brasileiro está provavelmente cometendo um genocídio como um crime contínuo, a conta gotas e ao longo de um século. E que deveria ser avaliado”, disse.
Ele sugere que o Tribunal Penal Internacional avalie a possível natureza genocida das políticas do país.
Eloísa Machado, advogada, professora de Direito Constitucional da FGV Direito-São Paulo e membro apoiadora da Comissão Arns, acredita que se trata de uma decisão histórica. Segundo ela, o TPP é a arena que vai promover um “escrutínio das más decisões que levaram aos milhares de mortos”. “Essa será a instância de registro da verdade e também de um tipo de reparação, mesmo que seja simbólica e moral. Uma reparação para todos os que sofreram”, afirmou a advogada.
Para ela, a decisão confirma a tendência de as instâncias internacionais terem se transformado no principal espaço de responsabilização e reparação de direito.
Paulo Sérgio Pinheiro, membro da Comissão Arns, indicou que a sentença poderá se constituir na única condenação internacional de Bolsonaro. Ele indicou, ainda, que a entidade enviará a sentença à queixa ao Tribunal Penal Internacional em Haia, onde o presidente é denunciado por crimes contra a humanidade.
Depois de uma audiência e de troca de informações ao longo dos últimos meses, a corte anunciou a decisão nesta quinta-feira, dia 1º de setembro.
Para o grupo, “graves violações de direitos humanos” e, em algumas ocasiões, atos que poderiam significar crimes contra a humanidade.
Os juízes optaram por não condenar Bolsonaro por genocídio, já que isso envolveria a existência de provas de que o presidente agiu contra uma determinada população em específico.
Denúncia
A denúncia contra Bolsonaro foi apresentada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, a Internacional de Serviços Públicos, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e a Coalizão Negra por Direitos.
Os grupos acusaram Bolsonaro de ter, “no uso de suas atribuições, propagado intencionalmente a pandemia de covid-19 no Brasil, gerando a morte e o adoecimento evitáveis de milhares de pessoas, na perspectiva de uma escalada autoritária que busca suprimir direitos e erodir a democracia, principalmente da população indígena, negra e dos profissionais de saúde, acentuando vulnerabilidades e desigualdades no acesso a serviços públicos e na garantia de direitos humanos”.
A denúncia esteve concentrada em demonstrar que houve uma prática de incitação do genocídio, principalmente contra os povos indígenas e movimento negro.
Presente na leitura da sentença, Raquel Dodge, ex-procuradora-geral da República, apontou que a Constituição exige eficiência na proteção da vida. “Temos de construir uma memória coletiva para compreender o que não podemos nunca mais tolerar”, disse. Para ele, a decisão ajudará a defender o estado democrático de direito.
Leia a conclusão completa do tribunal:
O Tribunal Permanente dos Povos, reunido em sessão de 1º de setembro de 2022, considerando os múltiplos elementos de prova testemunha e documental apresentados, além de informações em domínio público, reconhece que a conduta de Jair Messias Bolsonaro:
- Consistente em ter provocado dolosamente a morte de várias dezenas de milhares de pessoas mediante sua decisão tomada enquanto chefe do Poder Executivo Federal, ao rechaçar a política de isolamento, prevenção e vacinação frente à pandemia de Covid-19, configura um crime contra a humanidade.
- Consistente em incitar permanentemente a violência e estimular pública e continuamente a discriminação desumana de boa parte do povo brasileiro, constitui uma ameaça para esses grupos que resulta em uma redução do seu espaço social, configurando uma grave violação de direitos humanos.
O Tribunal Permanente dos Povos também recomenda aos órgãos do Sistema Universal de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos prestar atenção especial:
- Ao tratamento que o Estado brasileiro dirige aos seus povos indígenas, em razão da possibilidade que esteja cometendo um crime de genocídio de forma contínua e prolongada ao longo do tempo;
- Ao grau de respeito aos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais por parte do Estado brasileiro, em especial quanto à discriminação da população negra e parda. Neste último aspecto, o Tribunal Permanente dos Povos também recomenda;
- Demandar o caso sobre o tratamento fornecido pelo Estado brasileiro a estes grupos perante o Tribunal Penal Internacional, dado que é o órgão jurisdicional mais idôneo para a adequada discussão, esclarecimento e qualificação desta política continuada ao longo do tempo.
Papel de Bolsonaro
O texto ainda deixa claro que o envolvimento do presidente é direto. “A responsabilidade pessoal do presidente Bolsonaro por um crime contra a humanidade, argumenta a sentença, foi comprovada tanto sob o aspecto objetivo quanto subjetivo do delito”, disse a sentença.
“Em primeiro lugar, o elemento objetivo foi provado sem qualquer dúvida. O Brasil é uma república presidencialista, na qual o presidente, conforme art. 84 da Constituição brasileira, “compete exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal”. Portanto, foi o presidente quem decidiu sobre a política de saúde insana contestada na acusação. Bolsonaro – já foi provado, e aliás é conhecido e foi admitido pelo próprio – sempre minimizou a infecção pela covid-19, comparando-a a uma gripe normal e recomendando o seu tratamento com cloroquina”, disse.
“Em apoio a esta política homicida, invocou as razões de apoio à economia, que obviamente não podem prevalecer sobre o direito à vida e sobre o valor e a dignidade das pessoas. Mas na conduta de Bolsonaro também recorre o elemento subjetivo da culpa. De fato, era do conhecimento de todos, após os primeiros momentos de perplexidade e incerteza, que apenas as medidas de isolamento, distanciamento e vacinação recomendadas pela OMS e pela comunidade de cientistas teriam limitado a infecção do vírus e, portanto, o 17 número de mortos”, declarou.
“A conduta de Bolsonaro foi, portanto, intencionalmente direcionada ao desastre pandêmico, pois ele estava bem ciente de seu resultado, ou seja, do número enormemente maior de mortes que se seguiriam à falta de prevenção do contágio”, completou.
O que é o Tribunal Permanente dos Povos
Com sede em Roma, na Itália, e definido como um tribunal internacional de opinião, o TPP se dedica a determinar onde, quando e como direitos fundamentais de povos e indivíduos foram violados. Dentro de suas atribuições, instaura processos que examinam os nexos causais de violações e denuncia os autores dos crimes perante a opinião pública internacional.
Embora seja um tribunal de opinião, cujas sentenças não são aplicadas necessariamente pelos sistemas de Justiça oficiais dos Estados, os vereditos do TPP são relevantes. Eles indicam o reconhecimento de crimes e deveres de reparação e Justiça que, de outra forma, sequer seriam considerados pelos sistemas legais oficiais.
Outra de suas funções é embasar processos penais, servindo de subsídio para a elaboração de leis e tratados internacionais, com o objetivo de coibir a repetição dos crimes.
Um exemplo de sua relevância remete à sessão sobre a Argentina, na década de 1980, quando foi apresentada a primeira lista de desaparecidos políticos do regime militar no país.
Criado em novembro de 1966 e conduzido em duas sessões na Suécia e na Dinamarca, o tribunal pioneiro foi organizado pelo filósofo britânico Bertand Russell, com mediação do escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre e participação de intelectuais da envergadura do político italiano Lelio Basso, da escritora Simone de Beauvoir, do ativista norte-americano Ralph Shoenmane do escritor argentino Julio Cortázar. Na ocasião, o tribunal investigou crimes cometidos na intervenção militar norte-americana no Vietnã.
Nos anos seguintes, tribunais semelhantes foram criados sob o mesmo modelo, investigando temas como as violações de direitos humanos nas ditaduras da Argentina e do Brasil (Roma, 1973), o golpe militar no Chile (Roma, 1974-1976), a questão dos direitos humanos na psiquiatria (Berlim, 2001) e as guerras do Iraque (Bruxelas, 2004), na Palestina (Barcelona, 2009-2012), no Leste da Ucrânia (Veneza, 2014).
*informações Veja