Com a alta no preço do botijão, cada vez mais brasileiros usam álcool líquido em vez de gás na cozinha. O resultado é o aumento dos acidentes domésticos
Do portal Metrópoles –
O álcool é um líquido inflamável e traiçoeiro. Diferentemente do que ocorre na queima de lenha ou gás, quando o álcool pega fogo e o combustível está acabando, a chama fica transparente e nem sempre é perceptível.
Sem dinheiro para comprar gás de cozinha, Leiliane Oliveira, 35 anos, contava com uma latinha cheia de álcool para aquecer a comida e alimentar sua família. Em uma quinta-feira, ela arrumou o cabelo quando chegou a sua casa, e foi fazer o jantar para o esposo e a filha usando pela primeira vez o combustível comprado por R$ 3 no posto de gasolina.
O fogareiro improvisado apagou enquanto cozinhava mingau de fubá e frango ao molho. A auxiliar de cozinha pegou a garrafa quente de refrigerante cheia de álcool, abriu a tampa e tentou encher o reservatório.
Foi quando tudo explodiu.
Esse tipo de acidente tem se tornado cada vez mais frequente no Brasil. De acordo com levantamento feito pela Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ), entre março e novembro de 2020, foram registradas cerca de 700 internações em decorrência de queimaduras causadas em incêndios por álcool. Em alguns estados, como Pernambuco, houve aumento de 40% nos casos quando comparado com a quantidade habitual de ocorrências. Ainda não existe estudo específico de longo prazo sobre esse tipo de acidente.
Devido à alta expressiva no preço do botijão de gás desde 2016, aliada à permissão de venda de álcool líquido, à pandemia, ao desemprego e à crise econômica, a população tem procurado qualquer alternativa para economizar e garantir comida na mesa. De acordo com pesquisa feita pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), como parte do projeto VigiSAN, realizado em dezembro de 2020, cerca de 9% da população brasileira, ou 19 milhões de pessoas, estão em situação de vulnerabilidade alimentar. Em outras palavras, passam fome.
A prioridade é conseguir comprar comida, e não sobra dinheiro para garantir o gás. Estudo da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e do Ministério de Minas e Energia (MME) mostra que o uso de lenha em residências, algo que vem caindo há anos, teve aumento de 1,8% em 2020 quando comparado ao ano de 2019 – hoje, 26,1% dos lares brasileiros usam pedaços de madeira para aquecer comida, água e, até, para iluminação.
Não é que o gás de cozinha não chegue a essas casas (segundo o IBGE, 91% das residências têm fogão e instalação para o GLP). O problema é a falta de renda, que acaba empurrando a população de volta para a lenha.
O levantamento da SBQ mostra também que o perfil de vítimas de incêndios causados por álcool mudou com a pandemia. O desemprego e o home office obrigaram as famílias a ficar em casa, e homens, idosos e crianças estão entre os mais atingidos – além das mulheres que, por uma pressão social criada a partir do machismo estrutural, ainda são responsáveis por cozinhar diariamente e ficam mais expostas a queimaduras.
Pessoas desempregadas são as mais suscetíveis a perdas em incêndios causados por álcool, e a maioria mora em casas muito simples, feitas de materiais altamente inflamáveis, onde muitos familiares vivem no mesmo cômodo, o que aumenta ainda mais o risco de tragédia.
E a queimadura não é algo que acaba logo após o incêndio. Dependendo da extensão e gravidade da lesão, a condição se torna crônica, e é preciso cuidado constante durante toda a vida. Um projeto de lei, que tramita desde 2019 na Câmara dos Deputados, tem o objetivo de identificar o grande queimado – paciente com mais de 20% do corpo atingido pelas chamas – como uma pessoa com necessidades especiais.
O Projeto de Lei nº 4.558/19, do deputado Marreca Filho (Patriota/MA), prevê que “toda pessoa portadora de sequelas graves advindas de queimaduras tem direito de receber assistência integral para promover sua cabal reinserção social por intermédio da reabilitação física, estética, psicológica, educacional e profissional”.
A ideia é garantir o tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), incluindo próteses, órteses e cirurgias, assim como dar benefícios e isenções fiscais semelhantes às dadas a indivíduos com doenças graves ou deficiências. O texto também sugere que o poder público fique responsável por reinserir o paciente no mercado de trabalho.
Dor que nada resolve
O fogo queimou 40% do corpo de Leiliane. Do umbigo para cima, até o queixo, tudo foi tomado pelas chamas. Ao escutar os gritos da esposa, Alisson saiu correndo do banho, com uma toalha, para tentar apagar o fogo. Foi atingido também, e só conseguiu controlar as chamas que queimavam a mulher ao deitá-la no chão e jogar água em seu corpo. Foi uma vizinha que ouviu a gritaria, colocou os dois dentro do carro, e os levou correndo para a Unidade de Pronto Atendimento mais perto.
“De lá, nos encaminharam para o Hospital Regional da Asa Norte (Hran), que é referência para queimados. Foi mais de uma hora de viagem, na ambulância com os bombeiros, sem remédio para dor. Fui gritando o caminho inteiro, parecia que eu ainda estava pegando fogo, não sei nem explicar”, recorda Leiliane, que se lembra como fosse ontem do dia em que sua vida mudou.
No hospital, ela foi direto para a sala vermelha e acabou sedada. Acordou apenas no dia seguinte, já toda enfaixada. A auxiliar de cozinha ficou internada durante três meses, passou por seis cirurgias, fez enxertos de pele e teve uma infecção generalizada que atrasou o tratamento em semanas.
Por causa das cicatrizes, Leiliane precisou passar por um procedimento chamado de “degola”, quando a pele do pescoço foi cortada de fora a fora para a instalação dos enxertos – no incêndio, a área abaixo do queixo ficou basicamente grudada no tórax, dificultando o movimento da cabeça.
“Achei que ia chegar lá e iam me dar uma pomada, sabe? Foi um sofrimento sem fim. Todo queimado precisa tomar banho no Hran, e é uma dor que não desejo para ninguém. Passei meses sem dormir, vivia tomando morfina ou tramal na veia para lidar com a dor. Todo mundo falava que o trauma ia passar, mas não passou”, conta.
Após receber alta e voltar para casa, ela continuou sem conseguir dormir. A auxiliar de cozinha conta que tentava se mexer durante a noite, mas sentia muita dor. Leiliane se tornou paciente frequente da UPA, onde ia periodicamente receber anestésicos potentes na veia – nada administrado de forma oral funciona para queimados. Ela também precisava ir dia sim, dia não para o Hran. Quando não havia ambulância disponível para fazer a viagem de cerca de 40 km entre a casa dela e o hospital, os vizinhos ajudavam.
Até hoje, três anos depois, Leiliane não consegue levantar o braço esquerdo e ainda espera mais um procedimento para tratar as sequelas da queimadura – com a pandemia, todas as cirurgias foram adiadas. Ela conta que a pele queimada vai encolhendo, repuxando, e que chega a ter dor nas costas pela retração da área.
“A gente fala que quando aumenta o gás, aumentam as queimaduras”, explica José Adorno, presidente da SBQ. O médico explica ser muito comum que famílias mais vulneráveis recorram a líquidos inflamáveis para cozinhar, mesmo sem terem conhecimento do perigo e de como usar o produto de maneira segura. Ele considera que é algo cultural: o brasileiro convive de forma negligente com inflamáveis, e está em risco mesmo sem saber.
Adorno diz que a queimadura causada por álcool costuma ter uma gravidade maior. “Além do quadro agudo, que pode causar morte, grande parte dos pacientes fica com cicatrizes deformantes, limitações, problemas físicos que exigem cuidado especial para sempre. Há ainda um estigma que dificulta a convivência. Ele sobrevive, mas com muita dificuldade. Hoje, a queimadura é tida como a quarta causa de anos de vida perdidos por incapacidade”, afirma o médico.
O paciente internado precisa passar por desbridamento, procedimento no qual, com uma lâmina, o tecido necrosado e queimado é removido a fim de que a cicatrização melhore. Além disso, há a necessidade de vários curativos, cirurgias e enxertos (em que a pele de uma parte do corpo é retirada para que seja colocada na área afetada). A equipe de atendimento deve ser multiprofissional, com fisioterapeuta, enfermeiro, cirurgião plástico, clínico geral e intensivista. “É um tratamento caro. Atualmente, o SUS prevê que o gasto gira entre R$ 1 mil e R$ 5 mil por dia para um queimado”, conta Adorno.
Mesmo com todos os procedimentos e acompanhamento profissional, a pele não se regenera, e a região queimada vai ter cicatrizes para sempre. Além das consequências físicas, ainda ficam as emocionais: muitos dos queimados precisam de atendimento psiquiátrico e psicológico para aprender a viver com a própria condição.
Leiliane é uma dessas pessoas. Ela se considera uma mulher vaidosa, e a queimadura extensa em uma área tão exposta mexeu com a sua cabeça. “Eu não aceitava que aquilo tivesse acontecido comigo, nem me aceitava naquela condição. Meus seios queimados, foi algo que mexeu muito comigo como mulher”, lembra. Hoje, ela faz acompanhamento com psiquiatra e toma remédios controlados para conseguir levar a vida.
A auxiliar de cozinha também sofre com o olhar cheio de preconceito dos outros. Até hoje, não conseguiu um novo emprego. Além de sofrer com o calor, já que a pele agora é muito sensível, ela não consegue sequer uma oportunidade. “Eles olham pra mim, e acham que eu vou trazer problemas. Eu queria muito voltar a trabalhar”, afirma.
Desempregada, Leiliane também não consegue auxílio do governo. Ela contratou um advogado, mas o laudo do Hran não foi suficiente para provar que precisa de ajuda financeira para sobreviver devido a um acidente causado, em primeiro lugar, pela falta de dinheiro. Agora, passou por uma perícia com o psiquiatra, e espera finalmente sensibilizar o governo.
Depois do acidente que mudou sua vida, a auxiliar de cozinha conta que ficou traumatizada com álcool, e comprar gás se tornou prioridade na casa dela. Ela, a filha e o marido vivem apenas com o salário dele, mas o gás está sempre pago. “Tenho trauma. Nunca mais peguei em álcool. Se a gente fica sem gás aqui, vou para a casa da minha tia e a gente come lá até conseguir comprar o botijão”, explica.
Em chamas
“A grande diferença desse tipo de incêndio é que ele começa com a pessoa muito perto do local, aumentando o risco de danos e queimaduras mais graves. Se o fogo se alastrar, é importante sair o mais rapidamente possível do ambiente, sem se preocupar com bens materiais, e procurar a orientação dos bombeiros ou atendimento médico o quanto antes”, ensina o primeiro-tenente Gabriel Amaral, do Grupamento de Prevenção e Combate a Incêndio Urbano do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal.
A recomendação é resfriar a área queimada com água em temperatura ambiente e corrente. Não se deve usar gelo – a pele atingida perde a sensibilidade no momento da queimadura, e pode acabar piorando pela baixa temperatura. O ideal é que a região fique debaixo d’água por cerca de 20 minutos.
Pimeiros Socorros
- Coloque a região debaixo de água corrente, em temperatura ambiente, por cerca de 20 minutos.
- Retire roupas, joias e sapatos da vítima, pois o inchaço é comum nesse tipo de lesão. Caso algum tecido esteja grudado na queimadura, não tente removê-lo.
- Cubra a região com um pano limpo, de tecido de algodão.
- Procure ajuda médica. Se a queimadura for simples, basta ir ao hospital. Caso seja de segundo ou terceiro grau, é preciso chamar os bombeiros ou o Samu e ir imediatamente à emergência de um hospital.
- Nunca coloque qualquer produto em cima das queimaduras, como clara de ovo, pasta de dente ou óleo de cozinha.
- Não estoure as bolhas.
“Depois disso, não passe manteiga, borra de café, pasta de dente, nada. Cubra com um pano limpo, de tecido de algodão, e não estoure as bolhas. Se for uma queimadura pequena, vá ao hospital mais adequado. Se for grave, chame o Samu ou os Bombeiros. Pode ser necessário tomar vacina para tétano”, explica Adorno, da SBQ.
O tenente Amaral conta que, enquanto um fogão e um botijão de gás possuem vários dispositivos de segurança para evitar acidentes, o sistema usado para o álcool é improvisado e a probabilidade de algo dar errado é muito grande.
“Não há controle da chama como é no fogão convencional, e não se consegue estabelecer uma temperatura fixa. Quando a chama começa a diminuir e desaparecer, a pessoa acha que acabou o álcool, e usa mais. O líquido pega fogo muito rápido, e permite que se alastre mais rapidamente. Não é como uma cadeira, que vai demorar até queimar completamente”, explica o bombeiro.
Se a pessoa joga o álcool na chama achando que está apagada, o fogo sobe e chega à mão do indivíduo. Caso tenha contato com o líquido no interior do recipiente, ele pode explodir, espalhando ainda mais as chamas pela casa.
Aline de Freitas
Foi o que aconteceu com a recreadora Aline de Freitas, 35 anos. O marido dela, Gustavo, usava um tacho para fritar carne que era alimentado com álcool comprado no posto de gasolina. Ele achou que o fogo tinha acabado e, ao tentar colocar mais combustível no recipiente, a garrafa explodiu.
“Eu estava bem longe e o fogo chegou até mim. Eu corri para a ducha que tenho em casa, meu marido abraçava as minhas pernas com a toalha para tentar apagar. Ele não teve queimadura, nem uma bolha. Ainda bem, porque se tivesse pegado nele, tinha atingido meu filho também”, lembra.
Aline gritou por socorro, e os vizinhos chamaram o Samu. Ela foi levada diretamente para a UPA e ficou dois dias aguardando uma vaga na unidade específica de tratamento de queimados, que fica em outra cidade a cinco horas de distância de onde ela mora. Cerca de 46% do corpo dela foi queimado, e a paulista passou por seis cirurgias durante os 46 dias de internação. Pegou uma bactéria, algo comum com a pele danificada, e precisou refazer parte do procedimento.
A recreadora diz que sentiu uma dor “inexplicável” durante todo o tratamento. “A gente vive à base de morfina, mas ela não corta a dor do queimado. Os banhos são terríveis, eu desmaiava de tanta dor. Perdi o calcanhar, tive que fazer vários enxertos e passei 38 dias sem andar, sem confiança nas minhas pernas, tive que aprender tudo de novo”, recorda.
Ainda no hospital, ela falou para o marido “sumir com o tachinho”. Aline não queria mais ver o objeto que causou tanta dor. A recreadora conta que o caso repercutiu em Fernandópolis (SP), onde mora, e muitas pessoas a procuraram para contar que jogaram objetos parecidos fora: “Ninguém tinha ideia de que era perigoso. Depois do meu acidente, descobrimos o quanto é comum”.
O presidente da SBQ considera que o governo precisa organizar campanhas de educação para que a população aprenda a usar os inflamáveis de maneira correta e segura. “Precisamos também trabalhar na engenharia do produto, para ele ser mais seguro. Quando o álcool era só vendido em frascos menores, ajudava a impedir acidentes. Hoje, compra-se álcool de litro no supermercado”, alerta o médico.
Devido à pandemia, a venda de álcool líquido foi liberada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) enquanto durar a situação de emergência causada pela Covid-19. Para a SBQ, é importante caracterizar melhor os frascos, como é feito com o cigarro, para que as pessoas entendam os riscos e tomem cuidado ao manusear o produto. “As pessoas nem imaginam que é explosivo”, afirma Adorno.
Rede de tratamento mal distribuída
É comum, como nos casos de Aline e Leiliane, o centro de tratamento especializado para o grande queimado ficar a horas de distância. Em 2020, a SBQ fez um levantamento no qual foram identificados cerca de 60 hospitais que oferecem tratamento nos mais diferentes níveis de atenção no país. A maioria fica nas grandes cidades.
“O que se discute hoje é que, para dar atendimento amplo, precisamos de uma distribuição melhor. São Paulo, por exemplo, tem uns 16 centros para 540 municípios. Minas Gerais, que tem mais de 800 municípios, tem sete centros planejados, mas só três funcionam. Temos uma grande população e carência de atendimento”, afirma Adorno.
Há vários pontos cegos, o chamado vazio assistencial, principalmente nos estados do Norte e Nordeste. Em Porto Velho e Rio Branco, não há atendimento especializado. No Maranhão, uma portaria publicada em 2000 previu dois centros de queimados – o primeiro está sendo construído agora, 21 anos depois. Se a unidade federativa não tem como cuidar do paciente, ele precisa ser transferido para outro estado.
A dificuldade de atendimento e o cuidado tardio significam resultados piores, explica o presidente da SBQ. Há mais mortalidade, maiores chances de infecção e cicatrizes mais severas. “É um trauma que requer treinamento específico. O médico, o psicólogo, a equipe de saúde inteira precisam ser capacitados, e isso foi estabelecido na 2ª Guerra Mundial”, destaca Adorno.
O profissional da emergência tem de identificar a lesão, hidratar o paciente, saber cuidar da ferida, como evitar a síndrome de compartimento, definir a área afetada e a maneira correta de transferir o queimado.
Tipos de queimaduras
Primeiro Grau
A queimadura de primeiro grau atinge apenas a camada mais superficial da pele, a epiderme. Os principais sintomas são vermelhidão e inchaço leve no local, mas sem a formação de bolhas. O paciente pode sentir dor.
Segundo Grau
A de segundo grau atinge, além da epiderme, a derme, que é a segunda camada da pele. São observados os mesmos sintomas da queimadura de primeiro grau, mas acompanhados de bolhas, e a dor é mais aguda
Terceiro Grau
Já a queimadura de terceiro grau é a mais séria, e atinge todas as camadas da pele, chegando, ainda, aos músculos e ossos. O tecido queimado morre, e fica branco ou escuro. A queimadura é tão profunda que o paciente, a princípio, não sente dor: as terminações nervosas também são destruídas.
A queimadura pode ser leve (menos de 10% da área corporal), média (10% a 20% da superfície corporal) ou grave (mais de 20% do corpo). A palma da mão de uma pessoa é equivalente a 1% da superfície corporal, e essa medida é usada geralmente para medir a área afetada.
Qualquer queimadura em mãos, pés, face, pescoço e períneo precisa de atendimento médico específico, independentemente do grau.
O médico afirma que a situação já melhorou muito nos últimos 20 anos, mas faltam profissionais de saúde que tratem esse tipo de lesão. Adorno, que tem 30 anos de experiência com queimaduras, nesse tempo todo só se lembra de um curso específico de atualização: o Ministério da Saúde, em parceria com a Universidade de São Paulo (USP), está oferecendo uma capacitação aos cirurgiões plásticos do país.
A reportagem questionou o Ministério da Saúde sobre mais informações em relação a acidentes causados por álcool, assim como a possibilidade de programas de conscientização sobre queimaduras e mudanças nos centros de saúde do SUS ao redor do país para atender melhor o paciente. Mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Queimando combustível
A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que o uso de lenha para cozinhar é um dos indicadores de saúde da população de um país. Com a alta no preço do gás de cozinha, mais famílias precisaram voltar à madeira recolhida na rua para cozinhar e, até, como fonte de iluminação.
Segundo o IBGE, em 2018, 14 milhões de famílias usavam lenha ou carvão para fazer comida – esse é o dado disponível mais atualizado. Mas o cenário provavelmente piorou desde então. Especialistas apontam que o aumento no consumo de lenha representa um retrocesso de cerca de 200 anos no acesso às fontes de energia.
A queima da lenha em ambientes pouco ventilados, além de acentuar o risco de queimaduras pelo manejo dos pedaços de madeira, é responsável por aumentar casos de câncer de pulmão, tuberculose, catarata e uma gama de problemas respiratórios. Tudo por causa da fumaça.
Muitas vezes é feito o uso de compensado, que queima de forma menos eficiente, e com maior quantidade de partículas perigosas para o organismo. Segundo a OMS, respirar a fumaça com frequência equivale a fumar dois maços de cigarro por dia.
De acordo com estudo da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), o mau uso da lenha para cozinhar também piora a situação de pessoas contaminadas com o coronavírus. Segundo o levantamento, alguns poluentes liberados na queima (PM10 e PM2,5) potencializam a Covid-19, aumentando o dano causado pela doença no corpo do paciente. Pessoas que já se recuperaram da infecção também podem ser afetadas, já que a aspiração das partículas tem a capacidade de agravar os sintomas de Covid prolongada.
Mas por que o gás está tão caro?
No cerne do aumento dos casos de queimaduras causadas por álcool está o preço impeditivo do gás de cozinha para a população de baixa renda. Desde 2016, o Brasil adota o Preço de Paridade de Importação (PPI), que atrela o valor do GLP e da gasolina ao preço (em dólar) praticado internacionalmente. Por isso, o custo do botijão aumenta.
“O barril de petróleo não está barato, mas já foi bem mais caro. Está pesando muito para a gente porque temos um câmbio muito desvalorizado”, Victor Gomes e Silva, professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB).
Segundo o professor Victor Gomes e Silva, do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB), o preço do dólar está diretamente relacionado à inflação. Quando o valor sobe, é mais vantajoso exportar do que importar. Por isso, os produtos que são produzidos no Brasil vão para fora e ficam mais caros para a população. Se sobe o dólar, é mais interessante para o produtor vender para quem compra na moeda internacional do que na nacional, por exemplo.
“O que vivemos hoje é a incapacidade de o Banco Central controlar a inflação. Para resolver a situação, só aumentando a taxa de juros, tornando tudo mais caro para o consumidor, e fazendo ajuste fiscal. Quando você deixa a inflação subir demais, o remédio é muito amargo. Mas não vejo o governo fazer nada”, lamenta o professor.
Sergio Bandeira de Mello, porta-voz do Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Gás Liquefeito de Petróleo (Sindigás), afirma que, além do preço do dólar nas alturas, o momento internacional interfere na demanda pelo GLP, e encarece o produto. Ele conta que o preço já vinha subindo antes da pandemia, mas com a população em casa, houve uma descompensação das cadeias de suprimento: havia muito gás disponível, mas pouco era comprado.
De repente, com a reabertura das economias, a demanda aumentou muito e de uma vez, e o mercado não estava preparado. “O GLP não serve só para alimentar o fogão de casa, ele também é usado nas petroquímicas, e quando a China reaqueceu a indústria, tivemos uma expectativa de escassez, e todo mundo começou a comprar”, explica Bandeira de Mello.
O que é GLP?
- O Gás Liquefeito de Petróleo (GLP) é a união de dois gases derivados do petróleo, o butano e o propano. Pela pressão colocada dentro do botijão, o gás se torna líquido mas, na hora em que é usado, volta à sua forma principal.
- Também é acrescentado um composto à base de enxofre para que denuncie qualquer vazamento – como o GLP não tem cheiro e pode causar intoxicações e incêndios, a substância é usada apenas para dar o “cheiro de gás” e alertar para problemas com o botijão ou o fogão.
- O gás de cozinha não é usado somente para acender o fogo e preparar alimentos. Também tem aplicações no agronegócio e na indústria, além de ser o combustível utilizado para calefação em países frios.
- O GLP é considerado ecológico, uma vez que sua queima não produz gases que contribuem para o efeito estufa. Ele também é mais eficiente durante a combustão, exigindo menos produto para chegar a altas temperaturas.
O cenário não deve mudar tão cedo: com o inverno no hemisfério norte, o GLP é muito consumido para calefação. Se aumenta a demanda, aumenta o preço. “As perspectivas não são promissoras. Não vemos possibilidade de queda sustentada nos próximos meses”, afirma o porta-voz do Sindigás.
A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) informou à reportagem que os preços do gás de cozinha são livres no Brasil, e refinarias, distribuidoras e postos de combustíveis podem fazer reajustes sem depender da autorização de órgãos públicos. “Não fazemos previsões sobre a variação dos preços dos combustíveis”, destaca a nota.
Antes da adoção do PPI, a Petrobras fazia estimativa de preço considerando o valor utilizado fora do Brasil, e mudava com um espaçamento maior. Segundo Bandeira de Mello, não era incomum que a empresa praticasse um preço abaixo ou superior ao internacional. Manter o preço do botijão era algo de custo elevado para o Estado e a empresa. “Em preço de combustível tem que decidir quem vai pagar: o consumidor ou o contribuinte. No fim das contas, não existe almoço grátis”, pondera.
Ele considera que não é papel de uma empresa de capital aberto fazer política social – o subsídio desse tipo de produto, que é de primeira necessidade, deveria vir por parte do governo. No final de novembro de 2021, tentando fazer exatamente isso, o presidente Jair Bolsonaro (PL) criou o Auxílio Gás dos Brasileiros, programa que institui o vale-gás para a população carente.
O benefício funcionará por cinco anos, e só será disponibilizado para inscritos no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) que tenham renda familiar mensal igual ou inferior a meio salário mínimo para cada membro. Pessoas que recebem o Benefício de Prestação Continuada (BPC) também terão a ajuda de custo.
Terão preferência na fila do auxílio, famílias com mulheres vítimas de violência doméstica que tenham medida protetiva de urgência contra o agressor, e aquelas chefiadas por mulher.
A ideia é que os beneficiários recebam, a cada dois meses, uma parcela equivalente a, pelo menos, 50% da média do preço nacional de referência do botijão de 13 kg de gás de cozinha estabelecido pela ANP. O valor médio em 2021, por exemplo, é de R$ 102,48 – cada família receberia R$ 51,24.
Inicialmente, o primeiro pagamento, feito em dezembro, foi custeado pelo Ministério da Cidadania. Em 2022, o programa deve ser financiado com royalties da União sobre a produção de petróleo e gás natural, além de outras fontes de renda associadas à extração do produto.
Apesar de ser um bom começo, o Sindigás considera que o projeto é incompleto. Antes de mais nada, o dinheiro deveria vir na forma de um cartão que fosse usado apenas para comprar o gás – sem essa obrigatoriedade, a renda pode ser utilizada para custear outros produtos mais urgentes, como comida, e manter a população em situação de pobreza energética, usando lenha e álcool para cozinhar.
Bandeira de Mello sugere que, além de pagar pelo combustível, o governo deveria informar à população sobre a flutuação do preço, qualquer perspectiva de falta do produto e como economizar – como é feito com a energia elétrica, por exemplo. No caso do GLP, o consumidor ainda pode procurar diferentes marcas, revendedores, outros tamanhos de botijão (todos os fogões são equipados para funcionar com galões de 5 kg, 8 kg, 10 kg e 13 kg) e até dividir o valor.
“É muito preocupante quando temos a atribuição de culpa. Enquanto a gente procura o culpado, não achamos a solução. Não é algo que se estala os dedos e resolve, é um problema de renda que precisa de um olhar social”, afirma o porta-voz do Sindigás.
Números
Cada estado, um preço
No auge dos aumentos do preço do gás de cozinha, o presidente Bolsonaro sugeriu que a população fosse diretamente à distribuidora encher o próprio botijão, evitando, assim, o valor da revendedora e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) praticado pelos estados. Para o chefe do Executivo, parte da culpa do preço do GLP é dos governadores.
Porém, apesar de o ICMS fazer parte do valor do botijão, segundo a ANP, ele corresponde a apenas R$ 13 (3,67%) do preço do botijão que chega ao consumidor. A maior parte, 59,58% do valor, é equivalente à margem bruta da Petrobras, além dos custos – aqui, entra o que é cobrado internacionalmente. A revenda é responsável por 25,13%, e a margem de distribuição e custos, 30,26%.
A distribuição, no final das contas, é um dos maiores fatores de diferenciação de preços por unidade federativa. Quanto mais distante o estado está do polo de distribuição mais caro será o produto final. Por exemplo, um terminal em São Paulo armazena o gás que irá abastecer outros estados – os botijões ainda devem ser transportados de caminhão para diferentes localidades, como Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Diferença no preço do ICMS por estado
Da cozinha à política
No final de novembro, o presidente Bolsonaro, que é muito criticado pelo aumento no preço da gasolina, do diesel e do gás de cozinha, disse estar “buscando rever” a questão do PPI, e espera que um projeto de lei que congele o ICMS dos combustíveis seja aprovado pelo Congresso Nacional. No Senado, tramita um PL regulando o valor da gasolina, do etanol hidratado e diesel, mas não abrange o GLP.
Em junho de 2019, o ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a prometer que o preço do gás cairia até 50% dois anos depois, durante a gestão Bolsonaro. A previsão de Guedes não se concretizou. Em fevereiro de 2021, o botijão chegou a custar o maior valor desde que a ANP começou a catalogar os preços, em 2004, quando bateu R$ 79,59. Em setembro de 2021, chegou a R$ 97,73.
Tentando controlar a alta do preço do gás de cozinha, o presidente Bolsonaro publicou um decreto em março de 2021 retirando a obrigação de faturamento dos impostos federais PIS e Cofins do botijão, mudança que diminuiria R$ 2,18 do preço que chega ao consumidor.
Apesar de os impostos terem sido retirados, o valor negociado internacionalmente aumentou, assim como a margem de lucro dos distribuidores e o ICMS.
Mesmo com as tentativas do governo para baratear o preço do botijão, o gás de cozinha ainda representa uma parte grande do orçamento das famílias de baixa renda. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), a inflação por faixa de renda mostra que os maiores afetados pela situação econômica do país são as famílias que ganham quantias muito baixas, menos de R$ 1.808,79.
A vida depois da queimadura
A veterinária Adriana Piovesan, 33, foi queimada enquanto cozinhava com um rechaud na casa de praia com amigos. Como na maioria dos casos, ela achou que a chama estava apagada, e uma colega foi colocar mais álcool no recipiente.
Tudo explodiu: o recipiente, a panela, o rechaud. As duas foram levadas para a UPA na vizinhança e, no dia seguinte, um dos colegas, que é médico, colocou as duas dentro do carro e as levou para o centro de queimados de Itapecerica da Serra (SP).
“Eu tenho convênio, não tinha transporte disponível. No dia do acidente, recebi medicação. No dia seguinte, quando acordei, foi muita dor, parece que a gente está em outro estado de consciência. Cheguei a desmaiar duas vezes durante o desbridamento. O remédio ajuda, mas não tira completamente a dor”, lembra.
Adriana perdeu parte dos cabelos, queimou o rosto, os braços e as mãos. Depois de se recuperar em casa, com ajuda da mãe e de uma enfermeira, conta que ficou forte. “Já passei a pior parte”, afirma. Voltou a trabalhar assim que foi liberada, não quis ficar muito tempo parada, e ia de malha nos braços atender os pacientes.
Algo que todas as mulheres queimadas têm em comum é a dificuldade em lidar com as cicatrizes e a nova situação causada por um acidente que virou a vida de cabeça para baixo. A veterinária conta que se incomodava muito com as sequelas do acidente, com o olhar pesado de quem julga sem saber o que aconteceu.
“No começo, eu achava que todo mundo estava me olhando. As pessoas não perguntam, mas olham. Demorei muito para usar camisa de manga curta, achava que era feio. Fiquei com bastante cicatriz, muita queloide no braço. Passei muito creme, muito óleo, e hoje já me aceito bem”, diz.
A recreadora Aline lembra que passou muitos meses sem tirar fotos depois do acidente. Ela não aceitava a nova condição, e sofria com as cicatrizes do incêndio que mudou sua vida. “Não pego sol, não faço esforço físico, perdi a mobilidade de uma perna e ando puxando. Já faz dois anos”, conta.
O tratamento do queimado é longo, e, mesmo depois da alta, é preciso acompanhamento de assistente social, fisioterapeuta, psicólogo, médico e enfermeiro. O paciente necessita de ajuda para criar uma nova rotina, ter acesso à malha compressiva nos primeiros meses e conseguir se ressocializar. Em crianças, o apoio é ainda mais importante: elas vão precisar de cuidado especial na escola e auxílio para se incluírem no ambiente escolar.
“A queimadura é uma doença crônica. A depender do grau e da extensão, o paciente evolui com doença neurológica, endócrina, doença física do aparelho locomotor. Hoje, a vítima de queimadura extensa pode ter vários problemas de saúde”, explica José Adorno, presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras.
A auxiliar de cozinha Leiliane diz que só sobreviveu até aqui pela filha e pelo marido. Alisson esteve com ela em todos os momentos, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Hoje, não perde uma oportunidade de dizer que a esposa é linda.
“Ele é minha base. Antes do acidente, eu estava bem, começando um trabalho novo, feliz na minha vida sentimental e minha autoestima estava lá em cima. Era muito vaidosa. A sorte é que eu tenho marido e família que me dão apoio. Eu achava que minha filha precisava de mim, que eu precisava viver por ela, mas eu é que preciso dela”, afirma.
Leiliane também agradece pelas amizades que fez no caminho, as pessoas que passaram pelo mesmo que ela e se apoiam todos os dias. “É fácil entrar em depressão. Às vezes, você está tão triste, a sua rotina muda toda por causa das queimaduras, não é a mesma coisa. Uma mensagem de carinho, um desejo de bom dia, muda o meu dia”, confessa.