Há pelo menos dois momentos na história do país em que ocorreu algo similar com o que foliões estão vivendo neste ano: em 1892 e 1912
O Carnaval fora de época, com clima mais ameno e marcado para o feriado de Tiradentes, pode soar estranho, mas não é a primeira vez que a festa é celebrada em datas não oficiais. Há, pelo menos, dois momentos na história do país em que ocorreu algo similar com o que foliões estão vivendo neste ano, e ocorreram em 1892 e 1912. Além disso, por diferentes motivos, a festa acabou sendo celebrada duas vezes no mesmo ano em ambas as ocasiões.
No fim do século 19, o país vivia o início da República quando houve a tentativa de mudar o Carnaval para junho. Na época, a cidade do Rio de Janeiro era marcada por epidemias, como febre amarela e varíola, e uma solução pensada foi a de transferir as festividades para o inverno sob o pretexto de que as baixas temperaturas auxiliariam a não propagação desses surtos.
Jornalista e autor de “De Sonho e de Desgraça: o Carnaval Carioca de 1919”, David Butter diz que o que aconteceu em 1892 foi que a tentativa de mudança da data resultou em dois Carnavais. “O primeiro foi da porta para dentro, com festejos nos salões, e, em junho, não houve uma adesão tão grande, por diferentes motivos, como o frio, falta de costume, falta de adesão das agremiações. Assim, no ano seguinte, a festa voltou a ser celebrada na tradicional data”, afirma.
Em 1912, o que aconteceu foi que o barão do Rio Branco, então ministro das Relações Exteriores, morreu uma semana antes do início dos festejos. Por isso, foi recomendado que a grande festa fosse remarcada para o período da Páscoa. Foliões, no entanto, não concordaram com a decisão e foram para as ruas festejar.
Assim, as pessoas brincaram ignorando completamente a proibição e entraram em conflito com a polícia no feriado de fevereiro e também festejaram em abril.
Historiador e pesquisador da cultura popular brasileira, Bruno Baronetti relata que, na ocasião, o feriado cancelado se tornou uma festa popular, sem ligação com as chamadas grandes sociedades carnavalescas, responsáveis pelos grandes eventos, como bailes de máscaras e batalhas de confetes.
“Teve essa movimentação popular improvisada das pessoas comuns nas ruas que acabou acontecendo e, quando teve o Carnaval das grandes sociedades, o povo saiu às ruas novamente”, afirma Baronetti.
Na época, marchinhas falavam sobre isso e tiravam sarro do presidente da época, o Hermes da Fonseca, que ficou no poder entre 1910 e 1914. Nas ruas, era ouvido: “O barão morreu/ Teremos dois carnavá/ Ai que bom/ Ai que gostoso/ Se morresse o marechá”.
“Tinha a história do cômico, mas a crítica social falava do governo do Hermes que não foi bem avaliado”, diz o historiador. Hermes da Fonseca ficou conhecido por manter um governo truculento, com diversos episódios de repressão à população.
Escritor, professor e historiador, Luiz Antonio Simas analisa as relações entre 1892 e 1912 com o cenário atual. “Agora, tivemos uma emergência sanitária muito pesada que é diferente de 1912 porque as pessoas não estavam nem aí para a morte do barão do Rio Branco. O que é similar é que esse ano [no feriado oficial] não tiveram os desfiles de escolas de samba, mas nas ruas aconteceu um Carnaval não oficial”.
“Nós tivemos um Carnaval de rua que, claro, não é aquela grande aglomeração de fevereiro”, continua ele. “Agora, na prática, o que a gente vai ter é prioritariamente os desfiles de escolas de samba. [No feriado de Tiradentes] é evidente que vão ter pessoas brincando de Carnaval, montando os blocos na rua, mas é fundamentalmente os desfiles de escola de samba que vão ocorrer”.
Simas lembra ainda que outros momentos da história também já refletiram situações tensas entre foliões e autoridades. É o caso do início da década de 1940, quando foi cogitado que os desfiles de escolas de samba não ocorressem por causa da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Apesar das discussões, os desfiles aconteceram.
“Foi uma situação de tensão e o Carnaval sempre foi marcado por essas tensões”, afirma o historiador, que analisa se o que esta sendo celebrado neste feriado deve ou não ser chamado de Carnaval.
“Será que o que temos neste ano é Carnaval ou é um desfile de escola de samba?”, provoca o historiador. “Carnaval, a rigor, é uma data. O que a gente vai ter agora são os desfiles de escolas de samba em um estilo de redução de danos porque tem toda uma economia criativa que ficou parada. Então, essa retomada das escolas é um processo importante”, afirma.
O historiador analisa que, hoje, existe uma pulsão pela rua. “De certa maneira, passamos por impactos pesados de uma pandemia que parece estar sob controle, mas que continua”, relata ele, que compara o Carnaval deste ano ao menu de um banquete.
“Imagine o Carnaval como um grande banquete da alegria. O que a gente está fazendo em 2022 é comer o couvert”, diz ele. A seu ver, a festa deve “pegar fogo”, mesmo, em 2023.
Segundo Simas, hoje, existe um ensaio para a retomada das ruas e o sentimento de que sobrevivemos a um horror. “É uma coisa que o processo civilizatório mostra que a festa não tem o sentido de celebrar a vida boa, ela, em geral, acontece porque a vida não é boa, é dura. Então, é uma forma de dar um drible na beleza da vida, celebrando e festejando”.
*informações Folhapress