A semana que termina mostrou que o fundo do poço ainda tinha um alçapão. Entre o satanismo o o canibalismo, a única conclusão possível é a de que bons eram os tempos em que as campanhas presidenciais eram apenas sujas. O que está ocorrendo tanto nas redes sociais, terra de ninguém, como nos horários eleitorais oficiais de Jair Bolsonaro e Lula é indescritível e lastimável até mesmo para os largos padrões nacionais de insensatez e baixaria.
De vez em quando, gosto de lembrar um comentário do escritor Lúcio Cardoso, publicado no seu Diário Completo, em 1949, num dos intervalos democráticos experimentados pelo país durante esta nossa triste República. Escreveu Lúcio Cardoso, ao observar a balbúrdia que precedeu a eleição presidencial de 1950: “Não sei que caos é este a que se referem nossos articulistas políticos e que, segundo eles, já se aproxima. Engano: há muito estamos nele. O Brasil é um prodigioso produto do caos, uma rosa parda de insolvência e de confusão. A verdade é que já nos acostumamos com isso, não dói mais, como certas doenças malignas”.
O caos político nacional, contudo, jamais foi acompanhado dessa degradação a que assistimos. A degradação vai dos argumentos (ou melhor, da falta deles) à linguagem utilizada pelos candidatos e pelos seus partidários. O Brasil se tornou afásico e, nessa afasia, sobraram à compreensão geral somente o insulto, a invectiva, as imagens grotescas que, atribuídas ao adversário, espelham principalmente os acusadores.
Quando assisti, incrédulo, à propaganda eleitoral do PT que acusava Jair Bolsonaro de “comer carne humana”, veio à minha cabeça, por contraste, o início do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, no qual o escritor sintetizou a proposta modernista de devorar a arte e a literatura estrangeiras e devolvê-las ao mundo com originalidade, ao invés de simplesmente copiá-las. “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”, disse Oswald de Andrade, em 1928.
Esqueçam a arte e a literatura. Esqueçam a sociologia, a economia, a filosofia. Na realidade, a antropofagia só nos une politicamente. Por limitação cultural e o seu sucedâneo, o isolamento mental, não conseguimos mais nem sequer copiar longinquamente bons modelos. Somos apenas capazes de pegar, via ondas tropicais, os maus exemplos, tanto à esquerda quanto à direita, caricaturando aqui dentro o que já é caricatura lá fora, e caricatura cruel e perigosa, como o chavismo e o trumpismo. Resta-nos, desse modo, devorar-nos uns aos outros. Ao final, não sobrará nada para devolver a nós próprios e ao mundo, a não ser um deprimente espetáculo de sordidez.