Pesquisa da Fiocruz Nascer Brasil aponta que 45% das mulheres são vítimas de agressões no parto na rede pública, e 30% na privada
“Senti como se tivessem roubado meu parto.” É assim que Maria Gabrielli Andrade, 25, descreve o episódio de violência obstétrica que viveu, há dois anos. Ela lembra que teve que aguentar, desde piadas duvidando da capacidade dela de dar à luz, até a falta de amparo — quando teve um pedido de analgesia negado.
“Foi algo que mexeu bastante comigo. Eu queria ter o parto normal, mas após 18 horas de trabalho de parto e dor intensa, pedi analgesia, e eles disseram não sob o argumento de que eu não tinha a dilatação necessária. Até que não aguentei mais, tive que ceder e fazer uma cesárea”, relata.
É direito da mãe pedir a administração de analgésicos em qualquer fase do parto. Restrições físicas, violências psicológicas ou qualquer tipo de apropriação indevida do corpo da mulher pelos profissionais da assistência antes, durante, ou após o momento de dar à luz configuram violência obstétrica.
O caso do médico anestesista Giovanni Quintella, preso em flagrante por estuprar uma paciente durante a cesariana, reacendeu os debates sobre os diversos tipos de agressões que a mulher pode sofrer enquanto está em período de “vulnerabilidade relativa” ocasionada pela gravidez.
Pesquisa Nascer Brasil, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em 2012, mostrou que 45% das mulheres na rede pública brasileira já foram vítimas desse tipo de agressão, e outras 30% sofreram violência na rede privada. Contudo, não existe nenhuma legislação federal que estabeleça normas para proteger as parturientes, tampouco sanções aos agressores.
Diante da ausência de regulamentação em âmbito federal, especialistas consultadas pelo Metrópoles avaliam que pesa, especialmente, a falta de conhecimento sobre os direitos da mulher e a importância de torná-la protagonista no momento do parto.
Advogados consultados pela reportagem também destacam que a lei não traz punições específicas para profissionais de assistência que cometem os crimes, o que, em muitos casos, cria entraves para consolidar provas.
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“Atualmente, para responsabilizar os agressores e garantir o direito da vítima recorremos à Constituição Federal no que tange aos direitos humanos, direito à saúde e dignidade humana, bem como os tipos penais previsto no Código Penal e Responsabilidade Civil”, elucida a advogada Camilla Alves, especialista em violência contra mulher.
Camila ressalta que a mulher é agredida a partir da retirada da própria autonomia. O desrespeito à voz delas vive de extremos: ou a parturiente é obrigada a viver processos naturais como se fossem patológicos, ou ela precisa de auxílio e é negligenciada.
Na visão de Ruth Rodrigues, advogada especialista em violência obstétrica, não há acesso à informação para a mulher, que cresce ouvindo que “parto é assim mesmo”, tampouco para profissionais da saúde. Na outra ponta, o Judiciário também não está apto a responder as demandas das vítimas.
“A ausência de legislação federal demonstra a carência de esclarecimentos específicos. Mas a mulher está amparada pela Constituição, por legislações estaduais, por normas da Anvisa, por tratados internacionais. Os operadores do direito têm que aprender, também, a atuar com o que já existe”, pondera a profissional.
Agravantes da violência
Como mulher negra, Maria Gabrielli foi vítima de mais uma representação do racismo estrutural. A situação é agravada por um contexto socioeconômico que impõe entraves de gênero, raça e sexualidade ao pleno exercício de direitos.
“Existe uma crença de que, mulheres negras como eu, que são as maiores vítimas de violência obstétrica, seriam mais fortes, por conta do racismo e da objetificação da mulher preta”, compartilha. “Eu recorri a uma maternidade privada, especialmente, por medo de ser uma vítima, e ainda assim, fui”.
Segundo o estudo A Cor da Dor, realizado por pesquisadoras da Fiocruz em 2017, em casos em que foi realizada a episiotomia — procedimento caracterizado por um corte abaixo da vagina para facilitar o nascimento do bebê em partos normais —, as mulheres negras receberam menos anestesia local quando comparadas às mulheres brancas.
O cerceamento da autonomia da mulher faz parte de um problema cultural que reforça, a todo momento, a crença de que a dor e o sofrimento da mulher são parte da atribuição feminina de dar à luz.
“As pessoas acham que isso é comum no parto, portanto, não enxergam como violência. A mulher ser apertada, xingada, ouvir o médico dizer, ‘eu escolho, eu sei o que estou fazendo’, e retirar a voz da mãe e o poder de escolha dela, não é o natural, nem o correto”, frisa Ruth Rodrigues.
Aliás, a Lei nº 12.895/2013 informa que é dever dos hospitais e instituições de todo território nacional manterem, em local visível, aviso informando sobre o direito da parturiente a ter consigo um acompanhante, direito esse que deve ser respeitado sem qualquer ressalva ou condição.
A Lei Federal n° 11.108, ou Lei do Acompanhante, foi sancionada em 2005 e, desde então, assegura à gestante o direito à presença de um acompanhante durante o trabalho de parto, o parto e o pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), da rede própria ou conveniada.
Práticas abusivas escondidas pela “normalidade”
Layanne Silva, 26, foi vítima de violência obstétrica durante a gestação quando ainda tinha 17 anos. A situação de vulnerabilidade, intensificada pela faixa etária, virou motivo de piada para os profissionais de saúde que a atenderam.
“Eu senti um nítido preconceito por conta da minha gravidez na adolescência, e sofri vários tipos de violência que hoje eu sei, mas na época não tinha conhecimento. Desde agressões físicas até piadinhas do médico e da enfermeira”, ressalta.
A brasiliense deu à luz em um hospital público em Santa Maria, região administrativa do Distrito Federal. A lista de agressões começou pela restrição ao acompanhamento do namorado. A parturiente ainda foi exposta ao toque retal e à manobra de Kristeller, nome dado à atitude de pressionar a barriga para forçar o nascimento.
Apesar de não ter deixado sequelas físicas, o trauma deixou sinais psicológicos que perduram apesar de passados oito anos desde o parto. “Hoje, eu sinto medo de engravidar novamente, para não sofrer tudo de novo”.
Na visão da fisioterapeuta pélvica e doula Verônica Galeno, a violência obstétrica vai muito além de uma conduta inadequada. “Essa violência surge tanto de forma verbal, quanto psicológica e física. Ela resulta em traumas, depressão e um peso que a mulher carrega. Muitas mulheres que passam por partos traumáticos levam isso a vida inteira”, destaca.
A importância da denúncia
Nenhuma das duas vítimas consultadas pela reportagem se sentiu confortável em denunciar. Segundo a advogada Camilla Alves, especialista em violência contra mulher, a falta de legislação específica, a fim de estabelecer normas e procedimentos no período gestacional e implementação de informações para as gestantes, gera também, “dificuldades da vítima conseguir provas da violência praticada”.
“Muitas vezes, no momento da violência, elas se encontram desacompanhadas, e por óbvio a violência sofrida não é registrada no prontuário médico”, ressalta.
Contudo, a existência de normas estaduais é um caminho para facilitar a responsabilização de instituições de saúde e profissionais com condutas inadequadas.
De acordo com a especialista, a violência obstétrica resulta em crimes previstos no Código Penal, entre eles: homicídio, lesão corporal, constrangimento ilegal, ameaça, maus- tratos, calúnia, difamação e injúria. O Código Civil, ainda, assegura a responsabilidade civil do agressor, ora profissional da saúde, e também do hospital ou clínica médica.
“O que falta na Justiça são operadores do direito, delegados e juízes que entendam que aquilo causou dano e impacto negativo na vida dessa mulher. Não queremos tirar a autonomia do médico, o que precisamos é resgatar a autonomia da mulher que ficou perdida ao longo da história”, finaliza a advogada Ruth Rodrigues.
*Fonte: Metrópoles