Em 2010, quando aprovou seu mais recente documento de doutrina, a Otan habitava um mundo em que fazia papel de coadjuvante no Afeganistão, a China era um país distante e a Rússia, descrita como uma parceira estratégica. Nesta quarta (29), 12 anos depois, a aliança militar liderada pelos Estados Unidos anunciou sua refundação, cortesia da Guerra da Ucrânia iniciada por Vladimir Putin, entronizou a China como uma ameaça potencial e se prepara para um período de expansão militar contra Moscou ancorada em ações americanas e na entrada de Suécia e Finlândia no clube.
O novo Conceito Estratégico da Otan volta à fundação do grupo, hoje com 30 membros, em 1949 para encontrar sua razão de ser: combater Moscou com dissuasão militar. Os russos querem “estabelecer esferas de influência e controle direto por coerção, subversão, agressão e anexação”, diz o texto que ecoa os temores renovados de uma Terceira Guerra Mundial.
“A escalada militar de Moscou, incluindo as regiões dos mares Báltico, Negro e Mediterrâneo, em conjunto com sua integração militar com a Belarus, desafia nossas segurança e interesses”, completa o Conceito, que aponta para as seguidas ameaças de uso de armas nucleares feitas por Putin nesta crise de 2022 e o “inovador e disruptivo” desenvolvimento de armas com capacidade dupla, atômica e convencional, como mísseis hipersônicos.
Para fazer frente a isso, mais gasto militar: em 2021 apenas 8 dos 30 membros da Otan aplicaram mais do que 2% de seu PIB em defesa, como a aliança preconiza. É mais do que os 3 que o faziam em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e deitou a fundação da guerra ora em curso, mas ainda assim longe da meta.
“Nós enfrentamos uma mudança radical”, disse o secretário-geral da Otan, o norueguês Jens Stoltenberg, ele mesmo uma figura apática que namorava virar o presidente do Banco Central de seu país antes da crise. Ele disse que em 2022 9 membros chegarão aos 2% ou mais e 19, em 2024. A meta será “o piso, não o teto” do gasto militar -com efeito, os EUA puxam o comboio com 3,57% do maior PIB do mundo para a área militar.
É uma vingança tardia de Donald Trump, o mercurial presidente americano que colocou a Otan contra a parede em seus anos de mandato, a ponto de fazer o seu colega francês, Emmanuel Macron, dizer que a aliança estava com “morte cerebral”.
Seja como for, são os americanos os líderes, e por isso o presidente Joe Biden fez o anúncio mais concreto de aumento de musculatura militar contra a Rússia. Os EUA terão pela primeira vez no pós-Guerra Fria um quartel-general de Exército no Leste Europeu, na belicosa e antirrussa Polônia.
“No momento, Putin destruiu a paz na Europa. Os EUA e seus aliados estão se mobilizando, provando que a Otan é mais necessária agora do que nunca”, disse Biden. Um dos motivos explícitos da invasão foi impedir a adesão da Ucrânia à Otan, congelada desde um convite feito a ela e à Geórgia em 2008, que foi renovado sem muita convicção no Conceito Estratégico.
O pacote de reforço incluirá mais dois destróieres baseados na Espanha (hoje são quatro), dois novos esquadrões com caças F-35 no Reino Unido, brigadas não permanentes nos Estados Bálticos e na Romênia e defesa aérea adicional para Alemanha e Itália. É o maior deslocamento europeu de forças americanas desde a Guerra Fria. Hoje há 100 mil soldados de Washington no continente, e é provável que haverá mais. Ao todo, a Otan diz que vai aumentar de 40 mil para 300 mil seu efetivo de reação rápida.
Em números gerais, a aliança já é bastante superior à Rússia: gastou em 2021 US$ 1 trilhão, ante US$ 62 bilhões de Moscou com defesa, e tem 3,28 milhões de soldados, enquanto há 900 mil russos. Mas esses dados são ilusórios, como a natureza do combate na Ucrânia mostra, e o Kremlin comanda o maior arsenal nuclear do mundo.
Em troca de tal comprometimento, Biden viu sua principal preocupação estratégica atendida pelo novo Conceito: a China. O documento toma o cuidado de não chamar o gigante asiático de adversário, mas até aí também diz que gostaria de ter diálogo com Moscou. Afirma, contudo, que é preciso estar pronto para enfrentar as “táticas coercitivas e esforços para dividir a aliança” por parte de Pequim.
Mais relevante ainda é a simbólica presença de representantes de Austrália, Nova Zelândia, Japão e Coreia do Sul como convidados da cúpula, que acaba nesta quinta (30) em Madri. Pequim respondeu diretamente ao que vê como uma intromissão em seu quintal estratégico. “As expansões depois da Guerra Fria não só falharam em tonar a Europa mais segura, mas também semearam as sementes do conflito [na Ucrânia]. Não podemos permitir que esse tipo de turbulência e conflito que está afetando partes do mundo ocorra na Ásia-Pacífico”, afirmou o representante chinês na ONU, Zhang Jun, na terça (28) à noite.
Desde o começo da guerra, em 24 de fevereiro, paralelos vêm sendo traçados no Ocidente entre o que aconteceu com a Ucrânia e o que pode ocorrer em Taiwan, embora sejam casos incomparáveis do ponto de vista histórico -a própria ONU reconhece a demanda chinesa sobre Taipé.
Se alguém tinha dúvida de que o mundo se divide mais no ambiente da Guerra Fria 2.0, o documento da Otan deixa clara a nova realidade. Com efeito, Putin é o principal aliado de Xi Jinping, o líder chinês que pretende ser reconduzido a mais cinco anos de poder em novembro.
Turquia apresenta a conta por apoio Mas o foco mais imediato é na Europa, com o já conhecido, mas nem por isso menos histórico, anúncio de adesão da Suécia e da Finlândia à Otan após décadas (20 de Estocolmo, 7 de Helsinque) de neutralidade. O processo deverá ser acelerado, até porque as Forças Armadas de ambos os países já operam em sintonia com a aliança, mas não há uma data definida.
Stoltenberg agradeceu nesta quarta à Turquia, que levantou seu veto à entrada dos nórdicos da aliança com um acerto patrocinado pelos EUA na véspera. O preço vai se tornando claro: Ancara divulgou uma lista com 33 opositores exilados nos dois países que quer ver julgados como terroristas. A Suécia disse que vai estudar o caso.
Além disso, autoridades americanas já sinalizaram a luz verde para a venda de caças F-16 em versões mais modernas para substituir a frota de 260 aviões do tipo turcos.
Ancara foi expulsa do programa de fabricação do novo F-35 após comprar sistemas antiaéreos russos, um desafio político do presidente Recep Tayyip Erdogan à negativa de Trump de extraditar o acusado de bolar o golpe fracassado contra o turco em 2016.
Com a anuência turca, a cúpula escapou de um fiasco: se não anunciasse a adesão sueca e finlandesa, ficaria evidente a dissonância interna na aliança.
Ela tem várias facetas: a cautela maior das grandes economias, Alemanha e França à frente, ante as punições contra Putin, a rivalidade histórica entre turcos e gregos, a desconfiança de Paris sobre Washington após a perda de um contrato bilionário de venda de submarinos à Austrália.
A questão central, sobre quem irá pagar a conta do discurso, também vai se impor. Aumento de gasto militar, como o anunciado na antes pacifista Alemanha, é tema complexo em democracias: pesquisa recente mostrou que a maioria dos europeus prefere uma solução de acomodação para a Guerra da Ucrânia, por exemplo.
RÚSSIA VÊ AMEAÇA DE EXPANSÃO DESDE A GUERRA FRIA
Do ponto de vista russo, são avenidas a explorar, embora para consumo externo o momento seja de união e assertividade do Ocidente. Para o Kremlin, compartilhada pelos chineses, foram os ocidentais que começaram a briga, ao alienar a Rússia das tentativas de aproximação após a derrota do comunismo na Guerra Fria.
Com o fim da União Soviética, em 1991, a alquebrada Rússia que emergiu dos escombros era um país frágil, recuperado à base de receitas com venda de petróleo e gás e o militarismo ufanista da era Putin, iniciada em 1999. Daquele ano para cá, foram cinco expansões a leste, abarcando 14 países ex-comunistas.
O argumento na mão contrária é de que a Rússia, apesar de defender a neutralidade no seu entorno, na realidade busca militarizá-lo. Tornou a ditadura da Belarus abalada por uma crise política em 2020 num protetorado militar. Lutou em 2008 na Geórgia e, de 2014 para cá, na Ucrânia justamente para em nome desse cordão de isolamento. Membros da Otan como a Polônia, agora trincheira americana, dizem que serão os próximos. (Folhapress)
*Fonte: O Tempo