Enquanto se preparava para ser mãe pela primeira vez, Gabriella Martenson tomou uma decisão.
Ela decidiu não contar à criança se havia nascido menina ou menino, evitando ao máximo discutir seu sexo no nascimento com pessoas de fora da família e do seu círculo de amizades.
“Eu queria que eles fossem quem quisessem ser. Não quero decidir isso por eles”, afirma Martenson. Ela tinha 30 anos de idade e morava na sua cidade-natal – a capital da Suécia, Estocolmo – quando a criança nasceu.
“[É] só porque não quero decidir o que eles irão fazer quando crescerem, ou quem eles decidem amar ou com quem morar”, segundo ela.
Quando criança, Martenson foi basicamente criada dentro do estereótipo das normas de gênero, ganhando vestidos e presentes cor-de-rosa. Mas ela conta que, no final da adolescência, ela “descobriu o feminismo” e começou a questionar as normas de gênero.
or isso, quando foi mãe, Martenson decidiu comprar para a criança roupas e presentes diversos, desde trenzinhos até bonecas, dando a eles a livre escolha sobre qual queriam usar em cada dia específico.
Ela esperava que seu estilo de criação ajudasse a criança a se sentir mais confortável, explorando uma série de hobbies e estudos, em vez de empurrá-los em direção a atividades com maior estereótipo de gênero.
Martenson também acreditava que criar uma criança sem gênero facilitaria as coisas se eles eventualmente se identificassem como de gênero diferente do seu sexo de nascimento e ajudaria a aceitar outras pessoas que não adotam o gênero binário ou outras normas sociais. “Estou deixando que eles sejam qualquer coisa… e ensinando a não limitar suas ideias”, ela conta.
Martenson repetiu a abordagem com suas duas outras crianças. Ela faz parte do que alguns especialistas afirmam ser um número pequeno, mas crescente, de pais – homo e heterossexuais – que optaram pela criação de filhos sem estereótipos de gênero nos últimos anos.
Não se sabe exatamente quantas famílias adotaram essa estratégia, já que existem poucas pesquisas públicas ou acadêmicas sobre essa microtendência. Mas escritores especializados na criação de filhos, psicoterapeutas e professores da pré-escola afirmam terem observado crescimento dessa prática na década passada, particularmente no norte da Europa e nos Estados Unidos.
Embora o número de pais que optam por esta abordagem venha aumentando – por menor que ainda possa ser a tendência -, trata-se de uma escolha não convencional, que enfrenta controvérsias.
Mas os pais que contestam as práticas estabelecidas de criação de filhos têm motivações específicas e adotam abordagens práticas. E compreender essas questões pode ajudar os demais a entender suas escolhas e até esclarecer o que a abordagem tradicional dos pais pode significar para o futuro da criação dos filhos.
O aumento da criação de filhos sem gênero
Ravna Marin Nathanael Siever, de Berlim, na Alemanha, escreve, ensina e mantém um blog sobre a criação de filhos com gênero neutro. Siever afirma que decidir não rotular uma criança como menino ou menina começou a ganhar força nos anos 1980, principalmente nas comunidades queer.
O fenômeno coincidiu com o que eles descrevem como “a segunda onda do feminismo”, quando as mulheres se rebelaram contra o rótulo de cuidadoras em casa ou em certos empregos.
A pesquisa de Siever para seu livro exigiu a análise de décadas de estudos de gênero existentes e conversas com os próprios pais. Eles afirmam que muitas das pessoas atraídas pela criação de filhos com gênero neutro querem evitar submeter as crianças a experiências que elas próprias tiveram.
Crescendo em um mundo onde os estereótipos de homem-mulher e as estruturas de poder eram mais disseminadas do que hoje, as pessoas transgênero enfrentaram maiores níveis de discriminação e os relacionamentos LGBTQIA+ eram menos aceitos. Tudo isso trouxe consequências para as pessoas que não se adequavam a essas normas.
Por isso, a criação de filhos sem gênero surgiu não para “neutralizar” os gêneros das crianças, “mas para permitir que elas descubram sua própria identidade, em vez de saber dela pelos outros”, afirma Siever.
Siever afirma que alguns pais preferem a expressão “criação de filhos criativa com relação ao gênero”, para evitar confusão entre as pessoas de que seu objetivo seria de “neutralizar” o gênero. Outros também usam “criação de filhos com gênero aberto”, por motivos similares.
De qualquer forma, esse tipo de criação de filhos permaneceu muito limitado nos anos 1990 e 2000, segundo Siever, e começou a ficar um pouco mais conhecido no início de 2010, quando famílias homo e heterossexuais contaram suas histórias para a imprensa, gerando debates importantes e polarizados.
Entre essas famílias, havia um casal de Toronto, no Canadá, que tinha uma criança chamada Storm que não recebeu rótulo de gênero, além de um marido cis e sua esposa queer em Salt Lake City, nos Estados Unidos, que documentaram nas redes sociais a jornada com sua criança chamada Zoomer.
Ao mesmo tempo, surgiam relatos sobre pré-escolas na Suécia que evitavam os pronomes “ele” e “ela” para todos os alunos, o que também ajudou a divulgar a neutralidade de gênero, segundo Siever.
Mais ou menos na mesma época, Siever – que se identifica como transgênero, não-binário e poliamoroso – começou a criar a primeira de suas três crianças sem rótulos de gênero. Siever explica que sua experiência pessoal, depois de crescer nos anos 1990, teve forte impacto sobre a sua decisão.
Embora seus pais fossem influenciados pelas primeiras ondas feministas que incentivavam as crianças a “fazer o que quisessem” em termos de atividades, eles ainda rotulavam a criança como menina, o que era desconfortável para Siever.
“Demorei até ter quase 30 anos de idade para descobrir que eu podia simplesmente sair daquela caixa, porque não tinha palavras para mim. Não aprendi a linguagem para aquilo”, conta Siever.
Como Martenson, Siever acredita que a criação de filhos com gênero neutro desde o nascimento facilita a vida das crianças que decidirem não se enquadrar nas normas binárias e poderia ajudar essas crianças a evitar parte da “confusão” vivida por Siever durante sua própria juventude. Eles também esperam que essa abordagem ajude a ampliar a difusão das mensagens feministas.
“Ideias rígidas de gênero vêm sendo discutidas como a principal fonte da opressão patriarcal em décadas de trabalho feminista”, afirma Siever, que pesquisou décadas de estudos de gênero para seu livro.
“Quanto mais aberto for o crescimento das nossas crianças, menos estruturas de poder baseadas no gênero influenciarão quem tem poder na sociedade e quem se beneficia mais com isso.”
Mark Vahrmeyer, psicoterapeuta que trabalha com famílias em Brighton, no Reino Unido, acrescenta que, nos anos 2020, conversas sobre opressão e identidade de gênero tornaram-se muito mais comuns na imprensa e na sociedade. Isso está ajudando a mostrar aos pais que existem formas alternativas de criar seus filhos.
“Cada vez mais pais conhecem a possibilidade de criar um filho sem gênero”, afirma ele, devido ao aumento do uso do pronome “they” e da consciência geral sobre o impacto dos estereótipos e preconceitos.
Pela sua experiência trabalhando com pais e adolescentes, Vahrmeyer afirma que “cada vez mais pais querem dar aos seus filhos o espaço psicológico e emocional para expressar plenamente quem eles são, minimizando o impacto consciente e inconsciente que o viés de gênero pode ter sobre uma criança – por exemplo, considerando meninas ‘mais fracas’ ou meninos ‘mais inteligentes’.”
A prática real da criação de filhos sem gênero apresenta diferenças – e as abordagens adotadas pelos pais muitas vezes têm natureza pessoal, relativa às suas próprias percepções e experiências sociais.
Entre as famílias, uma opção é que os pais se refiram aos filhos usando o pronome “they”. Em inglês, surgiu a palavra theyby – uma mistura de they e baby, para designar essas crianças.
Outros pais, como Martenson, não usam as palavras “menino” ou “menina”, mas não se importam em usar o pronome do sexo de nascimento da criança (a menos que a criança peça em contrário), priorizando alternativas neutras como “criança” ou “colega”.
O escritor freelancer Markus Tschannen, que está adotando uma abordagem de criação de filhos sem gênero em uma região da Suíça de fala alemã, conta que preferiria identificar suas crianças com um pronome com gênero neutro, mas não existe esta alternativa em alemão. Por isso, ele e sua esposa chamam seus dois filhos com diferentes apelidos que nem sempre se enquadram com os estereótipos de gênero.
Em alemão, todos os substantivos recebem um artigo masculino, feminino ou o chamado “neutro”. A palavra “camundongo”, por exemplo, é feminina em alemão e recebe o artigo feminino die (“a” – die Maus). Por isso, Tschannen afirma que a maior parte dos pais alemães evita dar esse apelido para os meninos, mas sua família não pensa desta forma.
“Como pais criativos para questões de gênero, nós usamos deliberadamente nomes com todos os três gêneros gramaticais [do idioma alemão]”, ele conta. “A vantagem é que eles podem experimentar o que parece melhor para eles antes de se decidirem por um pronome preferido.”
“Basicamente, queremos dar a eles mais opções do que a sociedade, que tenta colocar as crianças em um padrão de gênero desde pequenas”, explica ele.
Tschannen e sua esposa são heterossexuais e ambos se identificam pelo seu gênero de nascimento. Para eles, a criação de filhos sem gênero foi menos uma reação à sua própria infância e mais sobre observar a evolução do mundo e decidir fazer as coisas diferentes.
Particularmente, ambos ficaram assustados com o “marketing pesado” de livros, roupas e brinquedos com viés de gênero que Tschannen acredita ter “explodido” na Suíça nas últimas décadas.
Como Martenson, o casal compra as roupas das suas crianças “nos dois lados da loja” e tenta apresentar a eles um amplo conjunto de pertences e entretenimento.
“Cuidamos para que eles leiam livros ou assistam a filmes que representem uma certa diversidade, sem reproduzir muitos estereótipos de gênero”, ele conta.
“Mas o mais importante é que cuidamos da nossa linguagem para não reproduzir estereótipos de gênero e tentamos ser modelos de bom comportamento”, explica Tschannen. “E também falamos abertamente sobre gênero e sexualidade desde o princípio – de forma adequada para a idade, é claro.”
Como Martenson e Siever, Tschannen também espera que a experiência facilite o caminho dos seus filhos, caso eles se identifiquem como LGBTQIA+, e os incentive a aceitar outras pessoas que se enquadrem nessas categorias.
“É natural que nossos filhos conheçam outras crianças que não se identificam com seu gênero atribuído no nascimento e que encontrarão muitas pessoas queer ao longo da vida”, afirma ele. “E quero que nossas crianças entendam as diferentes identidades de gênero e que entendam os diferentes pronomes.”
Ele compreende que outros pais acreditem que podem incentivar esses valores sem mudar sua linguagem e seus comportamentos a esse ponto. E também acha que os pais podem encontrar o lugar no “espectro de gênero neutro” onde se sentem mais confortáveis. Mas, na sua opinião, ele acredita que a abordagem da sua família é potencialmente mais “útil” na luta pela diluição dos estigmas e estereótipos de gênero.
Impactos desconhecidos
Como a criação de filhos sem gênero ainda é um fenômeno relativamente recente e limitado, os pesquisadores não sabem dizer muito sobre os seus impactos de longo prazo, incluindo suas consequências para as crianças e para a sociedade como um todo.
Os proponentes da abordagem argumentam que estão fazendo a diferença, pelo menos em nível individual.
Com base na sua experiência, Tschannen afirma que, na sua região da Suíça, ainda “se fala muito em coisas ‘que são de meninos’ ou ‘de meninas’, respectivamente”. Mas ele vê que suas crianças não “entram nessa questão”.
Por exemplo, se a sua criança mais velha ouvir um professor falando casualmente que “meninos não pintam as unhas”, eles “discordam ativamente ou simplesmente balançam sua cabeça em silêncio”.
Ele conta que essa criança – que comentou sua identidade com os pais quando tinha cerca de cinco anos, mas não quer que seja publicada – também tende a não se “enquadrar nos interesses ‘típicos’ de meninos ou meninas”, nem cores ou brinquedos (embora Tschannen afirme que ele não teria problemas com isso, se fosse o caso).
A criança mais velha de Martenson, que agora tem 11 anos de idade, identificou-se como menina desde que tinha cerca de quatro anos, espelhando seu sexo de nascimento. Mas Martenson é da opinião de que as experiências de sua filha crescendo em um lar de gênero neutro a ajudaram a sentir-se mais confortável para buscar uma ampla variedade de hobbies e a ter um guarda-roupa com diversidade de gênero ao longo do seu crescimento.
Ela conta que sua filha já “aceita muito” os colegas gays ou “que não se vestem de acordo com o padrão”. Martenson afirma que “ela não se preocupa com isso. Ela acha perfeito e que eles são corajosos por expressarem isso.”
Tschannen e Martenson têm claro que a criação de filhos sem gênero não termina quando uma criança escolhe um gênero com o qual se identifica. Eles ainda tentam evitar linguagem com estereótipo de gênero em casa, por exemplo.
“Quando falo sobre outras crianças, se for alguém que conhecemos [bem], eu posso dizer ‘ela’. Mas, se for uma criança no parquinho ou, sabe, os amigos da escola, eu os chamo apenas de ‘colegas’ ou pelos nomes”, em vez de referir-se a eles como “meninos” e “meninas”, afirma Martenson.
“Assim que as crianças conseguem nos dizer quais pronomes devemos usar, nós os usamos… mas ainda continuamos com o tipo de abordagem com gênero aberto, criativo ou neutro, usando linguagem mais diversa, porque não há motivo para que isso desapareça”, concorda Tschannen. “Nós continuamos querendo que as crianças saibam quais [tipos de] identidades de gênero existem e quais opções eles têm.”
Mas o psicoterapeuta Vahrmeyer afirma que sua experiência trabalhando com clientes indica que nem todas as crianças expostas a este estilo de criação reagem positivamente.
“Para crianças que se sentem seguras para explorar o espaço oferecido pelos seus pais, a jornada pode ser de descoberta”, segundo ele. “Mas, para algumas crianças, a falta de prescrição da identidade pode trazer incertezas e maior ansiedade.”
Em vez de rejeitar as normas de gênero, como seus pais esperavam, essas crianças podem “encontrar dificuldades com a falta de estrutura e orientação” e até “retornar a identidades de gênero enraizadas com mais força para compensar esses sentimentos de incerteza e agarrar alguma segurança”.
Mandree Lal, coach de luto e saúde mental infantil certificada de Wokingham, nos arredores de Londres, defende alguns aspectos da criação de filhos sem gênero, como escolher uma variedade de roupas e brinquedos. Mas ela concorda que rejeitar os pronomes de gênero pode ser confuso para algumas crianças, especialmente quando a maioria dos seus colegas ainda é classificada como meninos ou meninas.
“Dizer, sabe, que você é ‘eles'”, afirma Lal. “Não acho que uma criança possa entender o que são ‘eles’ e talvez [a criança] possa sentir que não se enquadra no mundo.”
Um dos filhos de Lal é transgênero e sofreu “bullying terrível” na escola. Ela acredita que as crianças rotuladas como “eles” podem não escapar de um nível similar de ridicularização, mesmo quando seus pais adotarem essa abordagem para evitar tensões futuras se os seus filhos não se adequarem às normas de gênero.
Ao mesmo tempo, ela indica que crianças sem gênero podem ainda precisar de uma “chave” de identidade pública se optarem por um rótulo de gênero binário posteriormente.
“Se os pais escolherem ‘eles’, a probabilidade de a criança escolher seu próprio gênero como ‘ele’ ou ‘ela’ ainda é muito alta. Por isso, aquela criança ainda terá que passar por muita coisa. Não é necessariamente uma proteção para elas”, afirma Lal.
Vahrmeyer acrescenta que os pais que decidem criar seus filhos sem gênero também precisam saber que, mesmo se estiverem tentando promover a liberdade, sua abordagem ainda pode demonstrar preconceitos.
“O trabalho e um pai é ser curioso sobre quem é a criança e ouvi-la, em vez de impor um ‘projeto’ ou ideologia a ela”, afirma ele. “Por isso, da mesma forma que agora é adequadamente considerado tóxico dizer a uma criança como ser uma menina ou menino, pode ser igualmente prejudicial que um pai imponha opiniões contra a adequação de gênero a uma criança.”
Erika Ohlsson, cientista comportamental de Estocolmo, na Suécia, também é da opinião de que alguns pais que adotam a criação de filhos sem gênero estão assumindo um ponto de vista político, por exemplo, “como uma declaração contra o patriarcado” ou para justificar problemas das suas próprias vidas com relação a como eles próprios vivenciaram a questão do gênero.
“Acho que a questão é com os próprios pais. Acho que eles podem não estar felizes e satisfeitos com sua própria masculinidade ou feminilidade”, argumenta ela.
Para Ohlsson, “agora, eles têm essa oportunidade, devido a esses dogmas ideológicos que aparecem nos debates e na política, que defendem que você pode escolher sua própria realidade [de gênero]”.