São claros os sinais de fragmentação entre parlamentares, ministros e ex-ministros, olavistas, neopentecostais, militares, negacionistas e ultraconservadores
Em casa onde falta pão, todo mundo grita e ninguém tem razão. Transportada à esfera política, a máxima popular aplica-se perfeitamente ao cada vez mais dividido campo que ajudou a eleger Jair Bolsonaro em 2018. Com as eleições se aproximando e a perspectiva de derrota do ex-capitão em outubro, intensificam-se as disputas e os bate-bocas entre expoentes do heterogêneo movimento que se convencionou chamar de “bolsonarismo”. São claros os sinais de fragmentação entre parlamentares, ministros, olavistas, neopentecostais, militares, negacionistas e ultraconservadores em geral que surfaram a onda bolsonarista há quatro anos. De olho nas urnas – e em muitos casos querendo distância de um hoje desgastado Bolsonaro – alguns conhecidos e controversos personagens se engalfinham na luta pelo espólio político da extrema-direita brasileira.
Neste cenário de “vaca estranhar bezerro”, como diria o sempre afiado Leonel Brizola, destaque absoluto para Abraham Weintraub. Decidido a concorrer ao governo de São Paulo mesmo sem as bênçãos de Bolsonaro, o ex-ministro da Educação fez uma acusação, em 16 de janeiro, que poderá render mais um processo contra o presidente no STF. Segundo ele, o ex-capitão disse saber que “estaria para aparecer uma acusação” contra o hoje senador Flávio Bolsonaro. A admissão, diz Weintraub, aconteceu em novembro de 2018, um mês antes da deflagração da Operação Furna da Onça, que, com base em dados do Coaf, jogou luz sobre o caso das “rachadinhas” no gabinete de Flávio e revelou ao mundo a figura do ex-assessor Fabrício Queiroz. “Se ele cometeu alguma coisa errada, ele é que vai pagar por isso”, teria dito a alguns ministros na ocasião o já eleito Bolsonaro, se referindo ao filho Zero Um, segundo Weintraub.
Na sexta-feira, 04, o ex-ministro prestou depoimento à Polícia Federal no inquérito que apura a eventual interferência de Bolsonaro na instituição, o que deve azedar ainda mais a relação entre os dois. A movimentação de Weintraub, ainda sem partido, abriu uma pequena crise no clã. Em briga nas redes sociais iniciada quando o secretário de Cultura, Mário Frias, curtiu um post que pedia a prisão de Weintraub e o acusou de “sempre fazer uma oposição sonsa” ao governo, o ex-ministro recebeu o apoio do deputado Eduardo Bolsonaro, ligado ao segmento que defende as “ideias” do ex-astrólogo e “filósofo” Olavo de Carvalho, falecido em 24 de janeiro: “Não se trata de unir ou dividir a direita, mas de separar o joio do trigo”.
Por trás da briga, está a eleição em São Paulo, onde Bolsonaro lançará a candidatura do ministro Tarcísio de Freitas, da Infraestrutura, provavelmente pelo PL. A disputa pública estende-se ao Senado, desde que o presidente anunciou a intenção de lançar a candidatura da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. A ideia fixa do presidente, repetida a aliados, é se reeleger com um “Senado diferente”, pois enxerga na Casa Legislativa o principal entrave às propostas do governo. Com planos de se lançar ao Senado, a deputada estadual Janaina Paschoal, do PSL paulista, não poupou o ex-aliado por escolher Damares: “Com a habilidade que Bolsonaro tem para unir a direita, em 2023 teremos um Senado vermelho para dar sustentação a Lula”.
À CartaCapital Janaina afirma que Bolsonaro “é um líder que governa no conflito”. Ela considera incorreta a estratégia utilizada em São Paulo. “No lugar de estímulos à união de seus apoiadores, sejam mais radicais ou mais moderados, ele fomenta a competição. Em um ano eleitoral, isso pode ser fatal para a direita e para a própria campanha dele”, diz. A parlamentar afirma não temer um “vácuo de liderança” na direita brasileira em caso de derrota de Bolsonaro: “Muito embora Bolsonaro tenha, em certa medida, capitaneado a onda conservadora, ele não é o seu único representante. Penso que os líderes com consistência, em um cenário de derrota de Bolsonaro, ocuparão esse espaço”. A tarefa de aglutinar os diversos setores não é fácil, admite. “Infelizmente, a direita é menos estratégica que a esquerda e ainda está muito eivada por vaidades.”
Outra disputa pública expõe o racha no campo que ajudou a eleger Bolsonaro em 2018. O ministro das Comunicações, Fábio Faria, apresentou queixa-crime contra o ex-chanceler Ernesto Araújo depois que este afirmou, em recente live, que Faria “entregou o 5G para a China”. A briga também tem implicações partidárias, uma vez que Araújo, outro representante do segmento olavista, disse que o PSD, partido do ministro, seria próximo ao governo chinês e até mesmo “financiado” pelo país asiático. “No meu entender, as ações do Ministério das Comunicações do Brasil são pautadas pelos interesses da China”, afirmou. Ao saber da ação movida por Faria, o ex-ministro das Relações Exteriores postou: “O processo contra mim só confirma a sua sanha de perseguir conservadores”.
Diretor do Laboratório de Estudos sobre Estado e Ideologia da UFRJ, Luiz Eduardo da Motta observa que “sempre houve um fracionamento interno” no campo bolsonarista, agora escancarado pelas prováveis dificuldades eleitorais. “As brigas internas que estamos presenciando se explicam porque o bolsonarismo é um movimento, mas não tem uma concepção orgânica de partido. A onda bolsonarista agregou, além de neofascistas, outros segmentos de direita, conservadores e antiesquerdistas”, diz. Para o professor, o momento é de ocaso para Bolsonaro: “Há um descenso devido ao próprio fracasso da agenda econômica do governo. Além disso, a política anticorrupção, uma das principais bandeiras de campanha de Bolsonaro, caiu por terra nesses três anos. São problemas na família dele, problemas na aquisição de vacinas, sem falar na ausência completa de uma política de combate à pandemia. Quando há essa crise de hegemonia, as frações começam a acontecer”.
Para além do olavismo, figuras proeminentes na onda conservadora de 2018 estão entre as defecções no campo bolsonarista e prometem incomodar o presidente até outubro. É o caso da deputada federal Joice Hasselmann, rompida com o presidente, desde 2019, e, hoje, abrigada no PSDB. Ela já enxerga o pós-bolsonarismo e aposta em um discurso mais moderado: “O importante é separar os extremos, tanto na esquerda quanto na direita, para trabalhar esse grande campo que vai da centro-esquerda à centro-direita”. A parlamentar dá como certo que a família Bolsonaro perderá o posto de protagonista do conservadorismo a partir do ano que vem. “Eles nem podem ser chamados de conservadores. Eles são extremistas, nazifascistas capazes de fazer qualquer coisa. O Bolsonaro é uma farsa, inclusive, como pseudolíder do movimento conservador.”
Para Hasselmann, “aglutinar o campo conservador não é fácil até porque há vários líderes que são mais ou menos radicais”. Por sua vez, Motta afirma que, caso Bolsonaro seja derrotado, não há no horizonte uma liderança que reúna condições de ocupar esse espaço em nível nacional: “Bolsonaro se tornou uma liderança carismática no contexto de 2018. Não há ninguém assim agora”. O professor da UFRJ acrescenta que Bolsonaro não pode ser considerado carta fora do baralho: “Creio que ele continuará em ‘stand by’’, deve se manter como liderança. Mas não vejo a possibilidade de manter em torno de si essa pluralidade de segmentos da extrema-direita e da direita conservadora”. Motta conclui que, independentemente de quem estará à frente, o campo ultraconservador tende a se manter organizado no Brasil: “O fato é que essas sementes estão lançadas e eu não acredito que serão superadas no curto prazo. Vai ser necessária uma transformação cultural para superar isso. Não acabará da noite para o dia, é um processo longo”.
*informações site CARTACAPITAL com revisão Alô Poços