Em casa, na escola, na igreja e até em um consultório médico. Quando o assunto é violência contra a mulher, não parece existir ambiente 100% seguro. Os dados comprovam: uma pessoa do sexo feminino é vítima de algum tipo de violência de gênero a cada oito minutos no Brasil, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Uma delas, a que ocorre em uma consulta ginecológica, pode deixar cicatrizes emocionais difíceis de serem superadas.
“Ginecologista dizendo que Deus tem um caminho melhor para mim depois que eu disse que tinha relação sexual com mulher”, publicou uma usuária do Twitter, em um exemplo da prática que envolve desde comentários constrangedores a exames realizados de forma abrupta, que podem machucar fisicamente a paciente.
“Já fui numa ginecologista que reclamou porque eu não depilava tudo… Eu só tinha 16 anos. Foi péssimo e eu nunca mais voltei”, desabafou uma outra usuária da rede.
Os traumas dessa violência
Além daqueles que podem ter alguma consequência física, esse tipo de violência também deixa marcas psicológicas. Muito comum nos relatos, situações vividas dentro de um consultório ginecológico podem afastar a mulher de consultas periódicas ou criar aversão ao gênero do médico que a atendeu.
“A consulta e/ou exame ginecológico devem ser inteiramente restritos à saúde da mulher, tudo que foge disso deve ser encarado como uma violência”, salienta a médica ginecologista Renata Gobato.
“Quando eu era adolescente, tinha acabado de descobrir que estava grávida e precisei ir ao ginecologista para fazer o meu primeiro exame de toque. Como era algo mais íntimo, decidi me consultar com uma mulher. Mas foi a última vez, me senti péssima no consultório e não voltei mais”, conta Ana Luisa* ao Metrópoles.
Ana* engravidou aos 16 anos e, de acordo com ela, tal informação já foi suficiente para ser tratada diferente pela profissional que a atendeu. “Era bem nítido que ela estava me julgando por ter engravidado tão cedo. Foi uma consulta bem ríspida e a médica me machucou na hora de realizar o transvaginal. Saí do consultório sangrando e abalada”, relata.
A entrevistada, que pediu para ter a identidade preservada, conta que, no momento do exame, a médica não teria feito o procedimento correto. “Só quando me consultei com um outro médico e ele realizou o mesmo exame sem me machucar, ele me explicou o que poderia ter acontecido de errado na consulta anterior e eu fiquei ainda pior”, conta.
Não é de agora
De acordo com Renata Gobato, o acesso à informação contribui para que mais mulheres falem sobre isso com certa facilidade. A profissional ressalta, no entanto, que esse tipo de violência não é algo recente. “Sempre existiu. Porém, a liberdade que a mulher tem e que as redes sociais nos dão para falar permite que esses relatos sejam mais compartilhados”, analisa.
“Acredito que, antigamente, a hierarquia que existia dentro de um consultório médico não permitia que ela falasse sobre as situações de desconforto que vivia na consulta”, explica a profissional.
Ao Metrópoles, Joana*, hoje com 53 anos, conta que foi vítima de violência médica quando tinha entre 24 e 25 anos de idade, no final da década de 1990. Prestes a casar, a moradora de Campo Grande (MS), à época, decidiu fazer alguns exames com um médico ginecologista para saber se estava com sua saúde íntima em dia.
“Parecia tudo certo. Cheguei no consultório, tirei a roupa e vesti a bata. No momento de examinar o meu útero com aquele bico de pato, ele fez um comentário horrível, totalmente impertinente: ‘Você é bem apertadinha’. E disse em um tom de voz que eu simplesmente tranquei as pernas e não quis mais fazer o exame”, relata.
Na tentativa de “acalmar” Joana* o médico riu, pediu calma e disse que seu comentário era um “elogio”. “Eu não consegui falar e nem fazer nada, a não ser sair da maca, me vestir e ir embora. Eu fiquei desnorteada”, relembra. Assim como a maioria das vítimas da violência de gênero, ela não conseguiu falar sobre o que tinha acontecido e nem pedir ajuda para alguém.
“A gente não comentava sobre isso em casa. Se eu contasse o que tinha acontecido para alguém, a primeira coisa que eu teria ouvido seria: ‘Mas o que você para isso acontecer?’. Por muito tempo eu me culpei, acreditei que eu tinha provocado aquilo. Só depois, com muita terapia, a gente entende que não foi culpa nossa”, conta Joana*. Por muitos anos, diferentemente de Ana Luisa*, ela evitou se consultar com homens.
As consequência dessa violência
De acordo com Renata, essa violência pode ser observada por meio dos questionamentos feitos pelo profissional que atende mulher, por determinados comentários e pela forma como os exames de toques são feitos. “Algumas perguntas íntimas, às vezes, realmente precisam ser feitas, como a rotina e tipos de prática sexual, por exemplo, mas com o intuito de saber se isso impacta na saúde da paciente”, salienta.
“Quando os questionamentos ou comentários são feitos de forma irônica, geram segundas interpretações ou quando ultrapassa o objetivo profissional da consulta, a mulher pode se sentir agredida e violentada”, explica.
Situações de violência médica como as descritas acima, contribuem para a não saúde íntima da mulher no Brasil. De acordo com dados do Datafolha divulgados no último ano, 13% das mulheres não têm o hábito de irem ao ginecologista; 11% disseram ter vergonha de ir e 4 milhões nunca procuram pelo atendimento especializado.
A evasão do consultório ginecológico pode impactar na saúde da mulher de forma permanente e influenciar na sua qualidade de vida. Gobato indica, em situações como essa, fazer uma denúncia do médico na clínica ou hospital em que ele atende, ou mesmo no Conselho Regional de Medicina (CRM). Além da denúncia ao estabelecimento, registrar um boletim de ocorrência deve ser o próximo passo feito pela mulher, se ela se sentir confortável.
*Com informações do portal Metrópoles