Crime no sertão da Paraíba fez crescer o debate sobre os limites entre o uso saudável da tecnologia e os efeitos da dependência
Na última semana, chocou o país a notícia de um menino de 13 anos que confessou ter matado a tiros a mãe, de 47 anos, e o irmão mais novo, de sete anos, além de ter deixado o pai gravemente ferido em Patos, no sertão da Paraíba, região Nordeste do Brasil. Em relato à polícia, ele disse que a proibição do uso de um celular – uma alternativa da família para o pressionar a ter notas melhores na escola – teria motivado o crime. Essa história obrigou famílias e mídia a debater com mais afinco os limites entre o uso saudável da tecnologia e o chamado “vício em telas”, que tem consequências físicas, como problemas posturais e de visão, e psicossociais, como ansiedade, isolamento social e agressividade.
Ponderando que outras diversas questões e atravessamentos precisam ser considerados, sendo impossível cravar uma correlação simplista entre o impedimento do uso do smartphone e a prática do crime, a psicanalista Cínthia Demaria reconhece que, no caso do crime que assombrou o país, é preciso, sim, levar em conta a dependência tecnológica do autodeclarado autor – conforme aponta o depoimento prestado às autoridades.
A estudiosa lembra que há diversas tentativas de caracterizar o que seria o vício em telas e, a partir disso, esmiuçar os efeitos causados pelo transtorno. Ela cita, por exemplo, que já se fala de fenômenos como a nomofobia – um transtorno caracterizado pelo medo irracional de estar sem celular ou aparelhos eletrônicos no geral – e a FoMO – acrônimo em língua inglesa para a expressão “medo de perder algo” e que também pode estar associado ao receio de, ao ficar offline, ficar por fora do que está acontecendo.
Em relação às crianças, Cínthia sugere que os pais ou responsáveis, desde muito cedo, estabeleçam limites quanto ao uso de dispositivos eletrônicos. “Em primeiro lugar, precisamos lembrar que é fundamental não dispensar o diálogo. A tecnologia não pode substituir esse diálogo entre pais e filhos. Além disso, é também verdade que, muitas vezes, as crianças estão conectadas porque os pais delas também estão”, alerta, reforçando a importância de se proporem prazos para se estar em frente à tela. “O ato de interditar o uso é também um ato de interdizer, e interdizer já é dizer alguma coisa. Ao colocar limite, portanto, a autoridade parental está estabelecendo um tipo de diálogo”, comenta, citando que, da mesma maneira que a criança tem horário para ir para a escola, para o banho, para o esporte, ela também precisa ter horário para uso de smartphones, tablets e computadores.
Por outro lado, Cínthia pondera que, de maneira geral, a dependência tecnológica não é uma regra. “Nossa cultura é, por si, digital. O nosso dinheiro já é eletrônico, já conseguimos cumprir uma série de tarefas por meio do virtual, como acompanhar o tráfego, ter informações e nos comunicar”, diz. Dessa maneira, ela sinaliza que a linha entre vício e tempo de uso ainda é confusa e difusa. “Ainda mais depois da pandemia, em que tivemos a tela como aporte inclusive para as interações sociais, de aprendizagem e de trabalho”, reflete.
Dado que vivemos sob influência desse contexto cultural altamente digital, “chega uma hora em que é inevitável que as crianças tenham acesso aos dispositivos móveis”, reconhece a estudiosa. “Mas, mesmo nesse momento, é importante que os pais ou responsáveis saibam que uso a criança faz da internet, estabelecendo novos limites e medidas de cuidado”, diz. Ela sugere atenção ao comportamento infantil a fim de identificar sinais de uso disfuncional da tela. “Se a criança fica ansiosa, se ela se sente mal e fica muito chateada quando não está usando o celular ou tablet, se evita encontros e demonstra agressividade quando proibida de ter acesso ao digital, temos sinais de alerta”, avalia. “Mas é preciso estar atento ao contexto, pois é natural que um menino prefira estar jogando do que ir a uma casa onde só tem adultos e ele não tem o que fazer”, diz.
Caracterizando o Vício em Telas
Embora defenda limitar o tempo de exposição à tela das crianças, a psicanalista Cínthia Demaria reflete que o vício se relaciona menos ao prazo gasto com os dispositivos e mais com a forma como isso acontece. “Tem pessoas que passam 12 horas por dia em um telefone – porque precisam trabalhar e estudar por meio do dispositivo, por exemplo – e não vão estar em um quadro patológico. O que é diferente de uma pessoa que passa até menos tempo em frente à tela, mas que sente que não pode viver sem aquilo”, pontua, advertindo que devemos estar em alerta sempre que começamos a tratar como necessidade algo que, na verdade, não é fundamental para a sobrevivência.
Ela ainda sinaliza que a origem do vício não é a tecnologia por si, mas o que está por trás daquele dispositivo. “Assim como as pessoas usam drogas por motivos distintos, as pessoas também desenvolvem dependência em relação a telas por razões variadas, como a necessidade de aprovação, a expectativa de estar comunicável o tempo inteiro, o vício em jogos ou em pornografia. Em resumo, podemos dizer que a tela, assim como outras coisas que consideramos adições, preenche aquele sujeito com algo que, sem o digital, ele não dá conta”, assinala.
“Para nós, adultos, existem estratégias que podem ajudar a lidar com a tecnologia de maneira mais saudável, como colocar alertas e usar aplicativos de monitoramento do tempo gasto no celular. Mas note que, nesse caso, caímos em um círculo vicioso e, para estabelecer controle, você passa a depender da própria ferramenta que te faz perder tempo”, critica. “Diante disso, acredito que seria mais efetivo desenvolver um senso crítico em relação à forma como usamos as tecnologias. Para tanto, uma pergunta que nós podemos nos fazer é ‘eu sinto que preciso me desintoxicar das redes?’. A partir dessa questão, vamos formular o que está causando incomodo em nós e trabalhar isso de maneira mais assertiva”, opina.
Telas X Cianças X Saúde
Analisando dados de cerca de 40 mil crianças e adolescentes de 2 a 17 anos, pesquisadores da Universidade de San Diego e da Universidade da Georgia, nos Estados Unidos (EUA), identificaram que o uso de equipamentos eletrônicos desencadeia alterações comportamentais, afetando a estabilidade emocional e aumentando a propensão para transtornos de ansiedade e depressão.
De acordo com o estudo publicado no periódico científico “Preventive Medicine Reports”, em 2018, até mesmo a curiosidade de aprender coisas novas pode ser reduzida. No caso daqueles que usam as telas multimídia por mais de sete horas por dia, 22,6% dos adolescentes demonstravam desinteresse – contra 9% dos que usavam por uma hora por dia. Quanto ao temperamento, aqueles que ficam mais tempo usando essas ferramentas tecnológicas têm o dobro de chance de demonstrarem sinais de impaciência e de serem diagnosticados com quadros de depressão. Os pesquisadores observaram que 42,2% dos adolescentes entre 14 e 17 anos que usam smartphones e tablets por mais de sete horas por dia deixam de concluir tarefas. O índice cai para 16,6% entre os que usam os dispositivos por até uma hora diária.
Em uma publicação de 2016, cientistas da King’s College, de Londres, apontaram, acompanhando mais de 125 mil crianças e adolescentes com entre 6 e 19 anos, que o uso desses dispositivos causa prejuízos ao sono – provocando reações como cansaço, sono diurno, desatenção, dores de cabeça e alterações de humor. Já estudiosos da Universidade de Toronto, no Canadá, citam aumento de 49% nos riscos de atraso no desenvolvimento da fala para cada 30 minutos de tela. O estudo envolveu cerca de 900 crianças com idade entre seis meses e dois anos.
O Ministério da Educação, Cultura, Esportes, Ciência e Tecnologia do Japão, através de pesquisa, checou que o volume de alunos com visão abaixo dos índices considerados saudáveis foi de 25,3% – um recorde. O governo nipônico apontou o tempo de tela como principal raiz do problema.
*informações O Tempo